quarta-feira, 29 de maio de 2024

Esse homem cordial, Ruy Castro, FSP

 Nos jornais, apenas nos últimos dias, leitura talvez imprópria para o café da manhã:

"Suspeita de jogar soda cáustica por ciúme em rosto de mulher de 23 anos no Paraná usava peruca da avó para disfarçar." "Jovem de 16 anos mata os pais a marteladas e incendeia corpos no RJ." "Ataque a tiros em festa de aniversário infantil deixa pai, filho e prima mortos em MG." "Marido e filho de 14 anos são detidos por morte de mulher enterrada viva em casa em SC." "No Rio, adolescente mata os pais após ser impedido de faltar à aula e avisa PM." "Em SP, adolescente que matou pai, mãe e irmã porque foi proibido de usar o celular se surpreende por ter sido apreendido."


"Suspeito de matar filho de dois meses a golpes de celular é preso em Goiás." "Em SC, casal que se apropriou de dinheiro do filho com doença degenerativa ficará preso, diz Justiça." "Preso marido de cantora gospel acusado de abusar da filha de 6 anos da assessora." "Em Goiás, pastores são condenados por torturar em clínica clandestina." "No DF, pastor preso por abuso de fiéis diz que sua cúmplice se inspirava em profeta bíblico."


"Stalker perseguiu médico com 500 telefonemas e 1.300 mensagens em Ituiutaba (MG)." "Professora é esfaqueada na frente de escola no interior de SP." "Em MG, ex-policial diz que queimou vivo delegado por rancor de quase 20 anos." "Policial baleado em SP por urinar na rua foi desarmado antes." "Suspeito de matar mulher em Guaramirim (SC) filmou corpo e enviou para a namorada, diz polícia."


O brasileiro, esse homem cordial, não? Algo está acontecendo conosco, e não é de hoje. Ou talvez sempre foi assim, nós é que não reparávamos. Essa turma do abuso, da bala, da faca etc. acabará pagando, mesmo que a prazo, pelo que fez. Mas, outro dia, um deles, coitado, pagou à vista: "Homem morre baleado ao tentar assaltar ônibus no Rio que trazia 28 PMs voltando de uma cerimônia".

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Gabriela Biló/Folhapress

terça-feira, 28 de maio de 2024

A quem interessa a militarização das escolas?, Maria Angélica Minhoto, Soraya Smaili e Pedro Arantes - FSP

 Uma semana agitada no estado de São Paulo para aqueles que têm a volúpia da farda e do coturno, legítimos herdeiros dos bandeirantes. Em duas ocasiões, a Polícia Militar do Estado de São Paulo levou o que alguns entendem como lei e ordem — ou bordoadas e bombas — a estudantes em manifestação.

Na primeira ocasião, quarta-feira, 22 de maio, na sessão da Assembleia Legislativa, a lei e a ordem foram levadas a estudantes e professores de educação básica que protestavam contra a votação do Projeto de Lei Complementar n° 9/2024, que institui o programa estadual de escolas cívico-militares.

Absolutamente primária, a iniciativa estadual reproduz os mantras do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), instituído na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, e de sua política educacional neoliberal. As principais justificativas, em ambos os casos, recaem sobre uma suposta melhoria na qualidade didático-pedagógica e na excelência administrativa da educação pública.

Segundo o Projeto de Lei estadual, as escolas cívico-militares poderão ter uma gestão cívica e uma gestão militar. Esta última será responsável por atividades extracurriculares cívico-militares.

Se a gestão didático-pedagógica e administrativa, segundo o Projeto de Lei, continuará sob a batuta do diretor da unidade escolar e da equipe pedagógica da escola, é no mínimo razoável questionar como, exatamente, a presença de policiais militares nas escolas irá melhorar a prática pedagógica. Será que professores e estudantes precisam realmente desse incentivo para fazer com que os indicadores de desempenho se elevem? Ou seriam necessários mais investimentos de outro calibre, como afirmam histórica e reiteradamente os estudiosos da área?

A exposição de motivos apresentada ao governador pelo secretário de educação Renato Feder é confusa e repleta de generalidades, ocupando uma página e meia com afirmações sobre a superioridade das escolas militares no desempenho e na disciplina, e tentando uma transposição direta e ilusória das supostas vantagens destas às escolas públicas a serem militarizadas.

Aliás, na exposição de motivos, para uma mudança de tal magnitude na educação paulista, Feder afirma que: "Em relação às despesas decorrentes da instituição do Programa Escola Cívico-Militar, importa registrar que o modelo é voltado para as práticas pedagógicas onde os estudantes são estimulados a cultivar o respeito à pátria, aos símbolos nacionais e aos direitos e deveres de cidadania." E segue concluindo: "Assim, podemos observamos [sic] que as despesas já são previstas e que o impacto orçamentário já está no custo de pessoal."

Mas, talvez o que obscuramente o secretário imagine ser justificativa para as despesas, seja, na verdade, a reiteração de que os objetivos das escolas cívico-militares devam guardar alguma relação com os da educação pública atual. Assim, as novas despesas poderão estar garantidas no orçamento da Educação, inclusive aquelas relacionadas à remuneração de militares da reserva alocados nas escolas, que passarão a auferir mais do que os profissionais da educação ali presentes.

A exiguidade do Projeto de Lei Complementar talvez contenha a astúcia de nada explicar, na suposição de que seus parcos argumentos são verdades irrefutáveis. Ou, ainda, tal astúcia esteja relacionada à certeza da aprovação previamente negociada.

Mas, afinal, há quem possa quebrar o consenso de que a presença de policiais militares nas escolas talvez não seja uma boa ideia?

Parece que há. Está previsto no PL que cabe à Secretaria da Educação o papel de promover "a conscientização da comunidade escolar sobre a importância da implementação das Escolas Cívico-Militares". Comunidade composta por pais, estudantes, professores, coordenadores, diretores e demais profissionais da educação. Equipes pedagógicas preparadas em nível superior e capazes de liderar suas comunidades, elaborar o Projeto Político Pedagógico das respectivas escolas e atuar em acordo com ele, responsáveis por adequar o currículo oficial às necessidades de suas turmas, integrando conhecimentos científicos e acadêmico aos saberes de seus estudantes, além de fazer a administração e a gestão pedagógica escolar.

Cabe então questionar como a presença de policiais militares da reserva viabilizará o cumprimento das diretrizes e metas do Plano Estadual de Educação (PEE), já que esse é um dos objetivos do programa. Será que as diretrizes e metas do PEE são exequíveis apenas sob a mira de policiais fardados? Como a presença dessa categoria auxiliará a escola a cumprir o expresso no Artigo 3°, inciso VI, do PL: "estimular a promoção dos direitos humanos e do civismo, o respeito à liberdade e o apreço à tolerância como garantia do exercício da cidadania"?

Os estudantes presos na quinta-feira nos deram uma amostra do apreço à tolerância que caracterizou a ação da Polícia Militar. Parece um escárnio que o projeto se refira ao enfrentamento à violência, à cultura da paz e à proteção dos estudantes nas escolas de áreas vulneráveis. As escolas em áreas vulneráveis, ocupadas majoritariamente por pessoas negras e pobres, apenas contarão com mais um instrumento de controle, dominação e violência.

A segunda ocasião da volúpia fardada ocorreu na sexta-feira (24), na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Em repúdio à presença do governador na universidade, estudantes foram reprimidos, com menor violência, é verdade. Faltaram o spray de pimenta e os cassetetes da quarta-feira (22). Talvez, a quantidade de juristas e advogados tenha limitado a ação, mas não muito.

Medidas como a que o estado de São Paulo está propondo para as escolas públicas levam à fragilização de nossa democracia ao induzirem a compreensão de que só por meio de obediência e repressão à juventude é possível transformar uma sociedade já em si extremamente violenta.

Como já afirmamos neste espaço, a qualidade da educação é indissociável de uma gestão democrática — palavra ausente do Projeto de Lei — da presença da pluralidade de ideias, da liberdade de ensinar e de aprender. Isso é o que está em nossa Constituição Federal.

A militarização das escolas é, ao mesmo tempo, um erro e um ataque ao direito subjetivo à educação e à cidadania, que requer liberdade e autonomia dos sujeitos, e não repressão e obediência.

No debate público, a fé é cega, mas as facas continuam amoladas, FSP

 O debate público brasileiro anda tão encharcado de gasolina que o mínimo atrito de ideias, coisa normalíssima na esfera pública democrática, gera um incêndio de grandes proporções.

A inevitável busca por cliques das versões online dos jornais, em perene crise financeira, e o paywall que nos títulos das reportagens entrega razões para a fúria, mas não os fatos ou argumentos que se situam depois deles; os grandes reservatórios de raiva e ressentimento político que se acumularam desde 2013 neste país e levaram grupos a afiar facas e preparar porretes para quando fosse a sua vez de bater; a transformação digital da discussão política, que converteu interlocutores que acreditavam em divergir com civilidade em militantes e militantes em guerreiros; a extrema tribalização da vida pública, com o aumento dos incentivos que cada grupo oferece para a radicalização e a intolerância —tudo isso contribuiu decisivamente para esse novo modo de debater política à base da "fé cega, faca amolada".

Fala-se muito em polarização e muitos entendem que seja um problema de binarismo, acreditando que uma terceira via quebraria esse feitiço. É um engano.

Polarização significa apenas que o centro foi esvaziado, todos foram se apertando nas posições mais extremas, não importa se são duas, três ou cinco. O problema, insisto, consiste na radicalização associada ao abandono das posições moderadas, que se esforçam em criar pontes, negociar pontos de vistas e ouvir o outro lado.

O país foi crescentemente tribalizado e radicalizado, e de forma tão intensa que mesmo as vozes mais sensatas não parecem se dar conta de que findam por soprar as brasas que inflamam os ânimos e impedem entender o que o outro quer dizer.

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Alguns exemplos me parecem ilustrar essa premissa, mas hoje ficarei apenas em um deles, prometendo voltar ao tema.

Há algumas semanas, uma coluna de Joel Pinheiro da Fonseca nesta Folha reconhecia que a direita antibolsonarista –"minoria valorosa, imprescindível no debate público qualificado, mas incapaz de conquistar as multidões"– precisaria criar espaço para que "bolsonaristas moderados" ascendessem. E estabelecia os requisitos da moderação exigida: respeitar as regras da democracia, aceitar os resultados das urnas e repudiar o uso da violência.

Na ilustração, feita de uma linha cor lilás, uma figura ocupa o espaço todo, o fundo é laranja vivo. Para se encaixar no espaço retangular laranja, do pescoço para cima fica dentro do troco do corpo, a partir da altura dos ombros, como se fosse uma folha dobrada. Ele observa um fósforo acesso numa mão e do lado da outra mão, um extintor de incêndios meio tombado.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 28 de maio de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

O mundo veio abaixo. Alguns responderam com argumentos, que é o que se espera do debate público, sustentando que, como "bolsonarismo" é simplesmente a denominação que por aqui damos à extrema direita, "bolsonarista moderado" seria algo como "radical moderado" ou "extremista de centro" ou "claro enigma" –uma impossibilidade lógica, um oximoro.

Afinal, extremistas de direita, por definição, têm tendências autocráticas.

Teoricamente sim. Mas o bolsonarismo é também um antipetismo, um reacionarismo e uma posição antiestablishment, distribuído ao longo de um espectro que vai das formas mais radicais e fanatizadas às mais mitigadas e hesitantes, como todo movimento político. Seria o bolsonarismo a única posição homogênea e unidimensional na política? Um ceticismo saudável nos levaria a descrer disso.

Isso posto, não deveria a direita republicana (isso não é oximoro) considerar a possibilidade de herdar parte do patrimônio eleitoral do bolsonarismo depois de decantar e expurgar ao menos suas pulsões fascistoides e a sua inclinação a aceitar a brutalidade como instrumento da política?

Argumentos desse tipo, contudo, foram raros. Em geral, o debate foi contaminado por inferência acerca das intenções do colunista, portanto, da Folha, logo, da mídia corporativa, por conseguinte, do neoliberalismo.

Claro, para guerreiros, o que existem são trincheiras e combatentes. E logo se decidiu que claramente o propósito da fantasiosa invenção de um bolsonarismo moderado era "normalizar" e ungir o governador de São Paulo como herdeiro do legado eleitoral do bolsonarismo. O que muitos consideram inaceitável, considerando particularmente o ranço antipetista da sua retórica, a adoção da brutalidade como política de segurança pública e as suas sucessivas demonstrações de canina fidelidade a Bolsonaro.

Suspeitar de uma agenda oculta do colunista é bastante para condenar, a priori, o seu argumento.

O fato, meus amigos, é que os campos magnéticos do bolsonarismo e do petismo continuam atraindo e distorcendo com tal força as discussões políticas que não se permite sequer que se façam projeções sobre o mundo pós-Bolsonaro ou pós-Lula.

Tudo é tragado pelo redemoinho da partidarização e da radicalização, no qual os argumentos morrem e a razão dá lugar à mera vontade.