quarta-feira, 26 de março de 2014

A lei da madeira


Num país em que a pseudocidadania não dá à mulher proteção contra o estupro, valores arcaicos a protegem, a seu modo, com a cultura da vingança e do castigo

22 de março de 2014 | 16h 00

José de Souza Martins
Os ataques de homens a mulheres no metrô e nos trens da CPTM mostram quanto ainda estamos longe de reconhecer a mulher como ser de direitos iguais e universais. Os agressores foram, num caso, um universitário, desempregado, residente na periferia. No outro, um técnico de informática e um engenheiro, igualmente jovens, que fotografavam as partes íntimas das vítimas na escadaria do metrô. Colhiam material visual para usar na internet. A Delegacia de Polícia do Metropolitano (Delpom) vem monitorando esse ativismo nas redes sociais. Uma página no Facebook, que se chama "Os Encoxadores" e estimula esse tipo de agressão contra passageiras de trem e metrô, tem mais de 12 mil seguidores. Trata-se, pois, de um movimento coletivo motivado por propósitos perversos e antissociais. Só neste ano, a Delpom já registrou 22 casos de ataques a mulheres em trens e estações, dos quais apenas um, o do universitário, foi classificado como estupro, sendo os demais definidos como importunação ofensiva ao pudor.
Trens e estações: 22 ataques a mulheres registrados só este ano - Alaor Filho/Estadão
Alaor Filho/Estadão
Trens e estações: 22 ataques a mulheres registrados só este ano
Dois dias antes da ocorrência na Estação da Luz houve uma tentativa de linchamento no outro extremo do País, em Boa Vista, Roraima. O sujeito arrastara para um matagal e tentara estuprar uma adolescente que fora levar a irmã à escola e voltava para casa. Ela escapou e pediu socorro, o que provocou o ajuntamento de vizinhos furiosos, que atacaram o estuprador a socos, pontapés e pauladas. Açulados pelas mulheres, os linchadores o despiram e lhe enfiaram um pedaço de madeira no ânus. Desmaiado, sangrando, foi amarrado e arrastado pelas ruas. Alguém filmou a ocorrência e colocou as imagens no YouTube, o que vem se tornando cada vez mais frequente.
A violência contra a mulher, longe de regredir, aumenta. Também modernizada, amplia-se na forma e no alcance, anula direitos lentamente conseguidos. Cada vez mais os agressores agem como se agredir as mulheres fosse um direito, como se a mulher fosse um ser de segunda categoria, mero objeto à disposição do homem. Os casos que vêm ocorrendo no metrô e na ferrovia envolvem como agressores pessoas da classe média, da qual amplo setor chega ao uso dos recursos e equipamentos do mundo moderno sem que sua mentalidade também tenha chegado lá, mesmo tendo curso superior. Chegaram à internet, mas não à civilização. São pessoas que têm uma relação patológica com os meios da modernidade.
Numa sociedade historicamente originária da cultura mutilante e repressiva da escravidão, que se disseminou para todo o conjunto das chamadas classes subalternas, e não só para elas, era de se esperar que a progressiva ampliação da liberdade civil e cidadã encontrasse um obstáculo no próprio novo suposto cidadão. Há muitas manifestações das consequências do desencontro entre o que se era e o que ainda não se é, apesar do progresso. A liberalidade dos tempos atuais, entendida como permissividade, como triunfo do mais forte ou do mais esperto e atrevido contra o mais frágil e simples, criou e difunde a curiosa concepção de que aqui as pessoas só têm direitos, nenhum dever.
O caso de Roraima, no outro extremo, contrasta com a benevolência liberalizante de classificar a agressão contra a mulher como mera importunação ofensiva ao pudor. Não se trata de adotar a lei do cão. O caso de Roraima e de numerosos outros semelhantes envolvendo o linchamento do agressor, documenta antropologicamente que a população, baseada no costume e na tradição, tem uma tolerância bem menor em relação a essa violência e adota extremo rigor no conceito de justiça com que a pune. Embora o índice de mortos e feridos em linchamentos em geral seja quase igual ao registrado em linchamentos motivados por estupro, o índice dos que escapam é de 8,2% num caso e de apenas 2,9% em outro, o que bem indica quanto o estupro é mais violentamente punido em comparação a outros motivos para linchar. É significativo que no caso de linchamentos de presos por estupro por outros presos o índice de mortos e feridos seja de 80%, dois terços dos quais de mortos. Mesmo os presos têm dificuldade em conviver com alguém que tenha praticado esse tipo de crime.
O estupro não é para a população apenas a consumação física da agressão sexual, mas também a violência simbólica do desrespeito. Muito mais grave do que para a classe média adventícia, cujos valores dominantes são os do mundo do consumo e não os do mundo da pessoa, o mundo das coisas e não o dos humanos. Os linchadores tendem a punir por igual tanto o estupro quanto o desrespeito. É que a mulher em nossa cultura tradicional é mais que o ser biológico. É também depositária da sacralidade da reprodução, o que a torna sexualmente intocável, a não ser nos ritos próprios do casamento e da procriação. O que não tira do vínculo sexual tudo aquilo que lhe é próprio e toda a alegria que é própria do amor. Portanto, num país em que a pseudocidadania, mais de discurso do que efetiva, ainda não conferiu à mulher toda proteção a que tem direito, os valores arcaicos da sociedade tradicional a protegem, a seu modo, na cultura da vingança e do castigo definitivo.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A SOCIOLOGIA COMO AVENTURA 

Após um ano, Haddad cumpre 9% das metas

Após um ano, Haddad cumpre 9% das metas

No balanço estão 150 km de faixas de ônibus e a criação do Bilhete Único Mensal; gestão vai lançar site no dia 3 para população fiscalizar plano

26 de março de 2014 | 3h 00

Adriana Ferraz - O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO - Um ano após o lançamento do plano de metas, o prefeito Fernando Haddad (PT) concluiu 11 objetivos, ou 9% de um total de 123. Balanço oficial da Prefeitura mostra que a maioria dos projetos finalizados diz respeito a medidas administrativas, como a criação de secretarias e de conselhos participativos. A lista inclui ainda o lançamento do Bilhete Único Mensal e a instalação das faixas exclusivas de ônibus, cujo total já ultrapassou os 150 km previstos.
Entre as 112 metas restantes há parte das principais promessas de campanha, como a construção de 243 creches, 55 mil moradias populares, 150 km de corredores de ônibus e 3 hospitais. Ambicioso, o plano depende diretamente da capacidade da Prefeitura de ampliar o porcentual de recursos que destina para investimentos e para o pagamento das contrapartidas necessárias para angariar verba federal. Hoje, esse índice é de R$ 3 bilhões.
O vereador Paulo Fiorilo (PT) admite que o governo enfrenta dificuldades financeiras para colocar os projetos em prática, mas ressalta que a Prefeitura está no caminho certo. "O plano tem quatro anos de duração e é viável, porque a gestão tem foco", afirma.
Já para Andrea Matarazzo (PSDB), o resultado preliminar indica que a gestão Haddad deve rever seu planejamento. "Esse plano não será cumprido, e não é só por falta de dinheiro, é por incompetência também", diz. Representante do PPS, Ricardo Young cita a falta diálogo político dentro do governo. "Isso atrapalha o andamento das questões na Câmara e na Prefeitura." O governo municipal não comentou.
Desde 2008, uma emenda à Lei Orgânica do Município proposta pela Rede Nossa São Paulo exige que o prefeito eleito apresente um plano de trabalho que, necessariamente, deve estar vinculado ao programa de governo escolhido nas urnas. Realizá-lo, no entanto, não é obrigação legal. Na gestão passada, por exemplo, o prefeito Gilberto Kassab (PSD) cumpriu só a metade dele.
Para o coordenador da entidade, Oded Grajew, é cedo para dizer se o plano de Haddad terá sucesso. "Só se passou um ano. De todo modo, neste período houve pontos positivos e negativos. Os positivos estão relacionados à maior participação popular e os negativos, à falta de uma ferramenta de fiscalização."
Site. A Prefeitura planeja lançar no dia 3 de abril um sistema online de monitoramento das metas. Prometido por Haddad em março do ano passado, o site atrasou. Agora, além dele, será criado um conselho de fiscalização, com cerca de 80 nomes.

A falta de água em São Paulo

Edson Aparecido da Silva e Ricardo Guterman: A falta de água em São Paulo - Le Monde Diplomatique Brasil

SANEAMENTO
A falta de água em São Paulo
Educar as pessoas para que mudem seus hábitos em relação ao consumo de água é salutar, mas existe uma grande diferença entre conscientizar e responsabilizar, mesmo subliminarmente, o cidadão pela ameaça de racionamento.
por Edson Aparecido da Silva e Ricardo Guterman
O risco iminente de racionamento no fornecimento de água que se vive hoje na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) está relacionado aos baixos níveis de armazenamento de água nas represas do sistema Cantareira, que estavam com apenas 16,9% de sua capacidade em 25 de fevereiro, o mais baixo desde sua instalação. O fenômeno decorre do regime de chuvas atípico neste verão, muito abaixo das médias históricas, e das altas temperaturas que provocaram o aumento do consumo. A possibilidade de racionamento, porém, é consequência também de problemas estruturais no conjunto do sistema de abastecimento, que opera sem nenhuma margem de segurança para fazer frente a eventos climáticos adversos.
O sistema Cantareira é o mais importante da RMSP, fornecendo 33 mil litros de água por segundo (33 m³/s), que abastecem cerca 8,1 milhões de pessoas da zona norte, central, partes das zonas leste e oeste da capital, bem como os municípios de Franco da Rocha, Francisco Morato, Caieiras, Osasco, Carapicuíba e São Caetano do Sul, além de parte dos municípios de Guarulhos, Barueri, Santana do Parnaíba e Santo André, o que corresponde a 44% da população da região metropolitana.
As águas que formam o sistema Cantareira são, na maioria, provenientes das bacias hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Algumas nascentes estão localizadas no estado de Minas Gerais, o que resulta na necessidade de autorização (outorga) federal para derivação dessa água das bacias de origem para a bacia do Alto Tietê, que equivale, aproximadamente, à RMSP. A outorga, que vence em agosto de 2014, quando precisará ser revista, prevê a reversão de 33 m³/s, restando 5 m³/s na bacia do PCJ.
A Sabesp é a responsável pelo fornecimento da quase totalidade de água para a RMSP, faz a distribuição no varejo em 32 municípios, inclusive a capital, e seis cidades compram água no atacado (Santo André, Diadema, São Caetano do Sul, Guarulhos, Mogi das Cruzes e Mauá). Santa Isabel tem sistema próprio.
A empresa, conforme informa em seu site, fornece 67 m³/s provenientes de oito sistemas de produção, que consistem na reservação, captação, transporte e tratamento, e atendem cerca de 20 milhões de pessoas. Essa produção de água, porém, é insuficiente. Para ampliar a oferta está sendo instalado, por meio de parceria público-privada (PPP), o sistema São Lourenço. Com captação em Ibiúna, a água percorrerá a distância de 83 quilômetros, e a produção, daqui a três anos, será de 4,7 m³/s.
Segundo o Relatório de Impacto Ambiental desse projeto, o Sistema Integrado de Abastecimento de Água da RMSP operou em 2010 com disponibilidade de 68,1 m³/s, inferior à demanda média estimada de 69,6 m³/s, ou seja, garantia de 95%. Só não faltou água porque a situação hidrológica era favorável e os sistemas produziam além de sua capacidade nominal. Ainda segundo o estudo, a diferença entre disponibilidade e demanda pode chegar em 2015 a um déficit estimado entre 3,4 m³/s e 5,8 m³/s.
Isso explica a crônica falta de água ou a intermitência no seu fornecimento, em quase todos os verões, nos bairros da RMSP situados em altitudes mais elevadas, naqueles que tiveram maior adensamento populacional e nas regiões de expansão e ocupação mais recente.
Os atuais problemas relacionados ao abastecimento de água da RMSP não se restringem à alta do consumo em razão das elevadas temperaturas e à falta de chuvas. Há graves problemas estruturais que não foram e não estão sendo enfrentados por omissão da Sabesp e do governo do estado.
A forma como a região se desenvolveu é outra grande causa dessa situação. A falta de planejamento metropolitano integrado, as ocupações de áreas de mananciais e de várzeas por ausência de política habitacional adequada, os baixos índices de coleta e tratamento dos esgotos que são despejados in natura nos córregos e rios, a carência de investimentos na busca de novas fontes de abastecimento e a ausência de planos de contingência para atendimento da demanda em situação de crise interferem de forma significativa nos problemas de abastecimento de água.
Nesse cenário, toda e qualquer ocorrência fora dos padrões normais gera crises, previsíveis, que poderiam ser mais bem enfrentadas ou até mesmo evitadas por medidas preventivas. Em razão da baixa disponibilidade hídrica na bacia do Alto Tietê, a gestão da água deve ir além da RMSP e abranger toda a macrometrópole paulista, que inclui, entre outras áreas, o Vale do Paraíba, Sorocaba, a Baixada Santista e Campinas.
Campanhas para a redução do consumo de água são positivas e deveriam ser permanentes, isto é, ser veiculadas não apenas em momentos de crise, independentemente se a diminuição do faturamento, por causa da economia de água, possa afetar a rentabilidade da Sabesp, que é uma empresa de economia mista, controlada pelo Estado, porém, com metade das ações negociadas no mercado, inclusive na Bolsa de Nova York. A companhia obteve lucro líquido de R$ 1,9 bilhão em 2012 e receita líquida de R$ 10,7 bilhões.
Trata-se de medida tardia lançar uma campanha publicitária quando já estamos à beira do colapso. Além disso, o desconto oferecido aos usuários abastecidos pelo sistema Cantareira deveria ser estendido a toda a região metropolitana, já que a economia nos demais sistemas pode possibilitar o envio da água poupada para parte da área abastecida pelo Cantareira. A explicação para essa medida não ter sido estendida para toda a RMSP é, novamente, a mesma: reduzir consumo e tarifa significa cortar receita e, consequentemente, lucro.
Educar as pessoas para que mudem seus hábitos em relação ao consumo de água é salutar, mas existe uma grande diferença entre conscientizar e responsabilizar, mesmo subliminarmente, o cidadão pela ameaça de racionamento. Ainda mais por parte de uma empresa que opera com elevadas perdas de água.
A primeira condição para a Sabesp pedir que a população economize água é ela própria evitar o desperdício. Infelizmente não é isso que acontece. A Agência Reguladora de Saneamento e Energia de São Paulo (Arsesp), que tem a atribuição de fiscalizar a Sabesp, apurou que no caminho entre os reservatórios e os domicílios as perdas de água foram de 31,2% em 2013. Para cada 100 litros retirados das represas, menos de 70 chegam ao seu destino. Tão grave quanto essa perda de água, suficiente para abastecer a população da cidade do Rio de Janeiro, segunda maior cidade do país, é a manipulação de números praticada pela Sabesp, que divulga 24% como o índice de perdas na região metropolitana, ou seja, sete pontos percentuais a menos.
A grande mídia, com seu poder de inserção, também cria um sentimento de culpa e responsabilidade sobre a dona de casa e o cidadão comum pelos problemas no abastecimento. Desempenharia papel mais relevante se trouxesse para o debate questões que abordassem, por exemplo, a questão das perdas e os problemas estruturais do sistema para criar um sentimento na opinião pública que obrigasse os verdadeiros responsáveis a tomar providências de mais longo prazo.
“Há males que vêm para bem”, diz o ditado. Esperamos que essa crise no abastecimento de água que afeta a RMSP, a principal do país, as demais regiões do seu entorno que integram a macrometrópole paulista e parte do interior sirva para fazer que o Estado e a sociedade deem a devida importância ao tema. 



Edson Aparecido da Silva e Ricardo Guterman
Edson Aparecido da Silva é Sociólogo, é coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA) e assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU/CUT); e Ricardo Guterman é sociólogo.