quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Há alguém de parafuso solto na GM - ELIO GASPARI


O GLOBO - 01/01/14

Demitir trabalhadores às vésperas do Ano Novo parece ser apenas malvadeza, mas o cheiro é de coisa pior



Alguém está com um parafuso solto na diretoria da GM brasileira. Ela é presidida por Jaime Ardila, um quadro da elite da empresa. Ainda assim, na véspera do Ano Novo, mandou um telegrama a centenas de funcionários de sua unidade de São José dos Campos, informando-os que estavam desempregados.

Podiam fazer isso na próxima semana, evitando o mal-estar nas famílias das vítimas. A medida não parece ter sido produto da pura malvadeza. Parece coisa pior. A montadora criou um fato social para pressionar o governo, que determinou o retorno gradativo da alíquota do IPI dos automóveis aos níveis de 2012. As empresas temem uma queda nas vendas. Segundo as montadoras, a volta do tributo poderá provocar um aumento médio de 2,2% no preço dos carros só com a mudança destes dias.

A coincidência de datas, com as demissões ocorrendo junto com a restauração gradativa do IPI, sugere que nela está embutida a estratégia da tensão: você encarece meu carro, eu demito trabalhadores. Nos próximos meses o retorno do imposto elevará a alíquota para 7%.

A GM está com um parafuso solto porque tem todos os argumentos para fechar uma de suas fábricas de São José dos Campos. Outras sete da região continuarão funcionando. A empresa investiu R$ 5,7 bilhões em quatro outras unidades e a carta das demissões estava no baralho desde janeiro de 2013. Foram dadas férias coletivas e licença remunerada aos trabalhadores que agora perderam o emprego. Nenhuma empresa pode ser obrigada a manter uma linha de produção que se mostrou inviável. Ademais, segundo a montadora, suas fábricas de São José dos Campos têm um custo de produção elevado.

Até onde o sindicato dos trabalhadores finge surpresa, não se sabe. Já o Ministério da Fazenda entrou no lance com a parolagem típica do doutor Guido Mantega. Informou que um acordo com as empresas garantia que a elevação do IPI não provocaria alta nos preços, nem demissões de trabalhadores. Se alguém fez esse acordo, entrou nele achando que o outro era bobo. Ou ambos continuam tratando os consumidores como tolos. Numa época em que o governo da doutora Dilma faz mágicas fiscais, assiste-se à ressurreição da lorota dos acordos com empresários, coisa comum ao tempo em que se fabricava inflação.

As montadoras não querem que o retorno da alíquota do IPI reduza suas vendas. Os consumidores também não querem carros mais caros, mas Brasília quer arrecadar, para gastar sabe-se lá onde. Essa é a discussão verdadeira. Demitir funcionários nos últimos dias do ano é chutar o cachorro manso.

As manifestações de junho mostraram que houve uma mudança nos sentimentos do andar de baixo. O próprio doutor Ardila expôs a questão com clareza: “Não pedem a derrocada do governo. Pedem melhores serviços públicos. O que pode ser mais razoável?” A rua roncou contra governadores e prefeitos que subiram tarifas de transportes e mandaram a polícia cuidar do caso. (Geraldo Alckmin e Fernando Haddad foram para Paris, onde formaram uma dupla cantando “Trem das Onze” num ágape.) Salvo a ação de baderneiros, ninguém se mobilizou contra empresas. A turma de parafuso solto da GM e a guilda das montadoras desafia um ato do governo desempregando trabalhadores às vésperas do Ano Novo. Má ideia

A lição que veio do frio - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR


GAZETA DO POVO - PR - 02/01

Estudo de pesquisadora norte-americana contraria o modelo educacional coreano e defende as benesses da escola criativa, que desenvolve poucas e boas tarefas, e se esmera na formação de professores. Esse lugar existe. Fica na Finlândia


A jornalista norte-americana Amanda Ripley inventou um exercício simples e, por causa dele, está fazendo a bola do mundo girar. Estudiosa de educação, debruçou-se sobre uma tabela com dados sobre avanço escolar em nações ricas. Não gostou do que viu – seu país, os Estados Unidos, progrediu muito pouco em meio século, apesar de toda a tecnologia disponível em sala de aula e do dinheiro em cascata investido no setor.

Em vez de lamentar, pôs-se em campo, fazendo estágios em três países onde crianças e adolescentes americanos fazem intercâmbio – Polônia, Finlândia e Coreia do Sul. Não por acaso, são lugares bem avaliados no Pisa, teste que desde o início do século mede o desempenho de 65 países, incluindo o Brasil.

Para começo de conversa, Ripley bate palmas para o exame internacional, um medidor que incentiva o pensamento crítico, passando uma carraspana na decoreba. Não por menos, o diferencial encontrado pela pesquisadora na Polônia e na Finlândia, em particular, foi a criticidade. É palavra perigosa em terras brasileiras, pois por aqui se entende criticidade, não raro, como uma receita pronta e monótona. São seus ingredientes as teorias da conspiração envolvendo os meios de comunicação, o ódio aos Estados Unidos e ao mercado liberal, e a afirmação do paternalismo do Estado.

Não é o caso. Ripley relaciona ser crítico a ser criativo. A depender de sua análise, o livro As crianças mais inteligentes do mundo, que lança no Brasil em 2014, pode se tornar a nova Bíblia dos educadores – ou pelo menos dos educadores ocupados em fazer reviravoltas. Nesse trabalho, a autora defende que melhor que pencas de lição de casa é a lição estimulante, que represente a resolução de um problema. E que, mais do que parafernália eletrônica em sala de aula, conta ter bons professores, quesito básico que faz a educação dar saltos triplos, cravados.

Em comparação com a Coreia do Sul – pródiga em tarefas estafantes e em número de horas passadas entre os muros da escola –, os outros dois países, com suas particularidades, se destacam por gerar expectativas nos alunos, e por fazê-los “donos” do conhecimento com o qual estão tendo contato. Ponha-se na conta a Holanda, também alvo da análise da pesquisadora, país conhecido por abraçar uma educação que caminha na contramão dos massacres coreanos.

O pesquisador polonês-americano Martin Carnoy, ao estudar o mistério da educação cubana, tinha chegado a conclusão semelhante. O que faz as escolas da ilha de Fidel proeminentes, mesmo que estejam prestes a desabar, seria a política das avaliações criativas, feitas por um grupo de professores notáveis, que passa de instituição em instituição estimulando os professores a fazer exercícios diferentes e marcantes. A depender de Martin e de Amanda, a afirmação da escola penitente está com os dias contados.

Sabe-se que não é assim tão fácil. Ainda mais no Brasil, onde as práticas pedagógicas não são um mar de rosas. Houve melhoras no ensino, inclusive entre os mais velhos. Pressionados pela competição no mercado de trabalho, o número de brasileiros entre 30 e 64 anos que voltaram à escola saltou de 1,5% em 1992 para 3,4% em 2012, de acordo com os dados do IBGE. Nas demais faixas, igualmente, os avanços são sensíveis. O que não se consegue mudar é a relação entre aumento de escolaridade e níveis de desenvolvimento, o que é paçoca nas nações ricas.

Os motivos dessa “trava” merecem investigação, mas bem se pode adiantar que o problema passa pela qualidade de ensino. Amanda Ripley facilmente identificaria que o nosso nó está no despreparo de uma grande massa de professores para a tarefa de ensinar. Não é que não queiram. Ensinar bem exige vigilância constante, treino, debates, estratégias, o que não se consegue sem trabalho pesado e boas políticas públicas.

Quando o economista Gustavo Ioschpe fala no desperdício de dinheiro – e de talentos – na educação brasileira, a outra coisa não se refere senão ao que já se tornou um culto ao despreparo. A escola se defende com pedras na mão. Mas não se pode aceitar passivamente que cinco anos de aprendizagem numa escola brasileira sejam tão inferiores aos mesmos cinco anos passados num colégio finlandês – como bem alerta o analista Samuel Pessôa.

Com perdão ao clichê desta época do ano, eis um bom ponto para 2014.

O que esperar da Justiça? - JOSÉ RENATO NALINI


O Estado de S.Paulo - 02/01

O Judiciário é o grande protagonista da cena estatal neste início do século 21. Todas as questões humanas são agora livremente submetidas à sua apreciação. No cenário micro, as pessoas perderam o receio de ingressar no Fórum, descobriram o acesso à Justiça e a ela recorrem com desenvoltura. No mundo macro, todas as políticas públicas passam pelo Estado-juiz, graças a uma Constituição que subordina a administração pública a princípios judicialmente aferíveis. Qualquer atuação estatal resta jungida à avaliação de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Diante desse comando explícito, ficou superado o óbice à incursão judicial sobre o mérito administrativo. Antes, alguns assuntos residiam na esfera da discricionariedade do administrador. Agora, incumbe ao juiz examinar se o gestor da coisa pública observou estritamente a vontade constituinte. Constatado o desvio, o julgador se arroga na função governativa.

Resultado dessa redescoberta da Justiça foi o excessivo demandismo brasileiro. Tramitam atualmente 93 milhões de processos para 200 milhões de pessoas. Como se todos os habitantes desta Nação estivessem a litigar. A beligerância parece a regra para quem observa o Judiciário desta era. Administrar o crescente número de ações judiciais requer prudente análise do fenômeno. A resposta singela e tradicional é multiplicar as estruturas do Judiciário, com criação de mais unidades, ampliação do quadro de pessoal e urgência na obtenção de orçamento compatível com as necessidades atuais e vindouras.

Outra leitura implicará prover a Justiça de gestão competente para acelerar a outorga da prestação jurisdicional sem aumentar em demasia as atuais estruturas. Para isso a informatização deve ser otimizada, de maneira a propiciar maiores resultados, a par de capacitação e motivação do funcionalismo a oferecer o melhor de seus préstimos, sem a promessa de inflação do quadro de servidores. O funcionário estimulado se convenceria de que é mais eficaz investir numa carreira prestigiada, com perspectivas de ascensão funcional e de retribuição por desempenho, em lugar da proliferação infinita de cargos e funções mal remuneradas.

As especificidades da Justiça não a isentam de absorver a cultura dominante, em que o ritmo da sociedade não se compadece mais com a lentidão do processo judicial. O modelo de quatro graus de jurisdição impõe ao demandante e ao demandado um suplício que se não confunde com perder o pleito: aguardar durante longos anos que se profira o julgamento definitivo, após as idas e vindas de instâncias intermediárias. Sem falar nas dezenas de oportunidades de reapreciação do mesmo tema, ante o caótico esquema recursal.

A par disso, a Justiça tem de continuar a conviver em harmonia com as várias alternativas de solução de conflito que prescindem da intervenção judicial. Seu papel é sinalizar qual a leitura predominante do ordenamento para que a pacificação resulte de um desenvolvimento da autonomia cidadã. Incentivar a conciliação, a mediação, a negociação, a transação, a celebração de acordos após imersão das partes na realidade que bem conhecem é fundamental para que impere a efetiva justiça no Brasil.

Investir na cultura do diálogo não interessa exclusivamente ao Judiciário, para mero alívio de sua insuportável carga de trabalho. A questão é muito mais séria e abrangente. Entregar todos os interesses ao Judiciário, agora, significa formatar uma cidadania inoperante, incapaz do diálogo, e tornar cada vez mais remota a potencialidade de implementação de uma democracia participativa. Como preparar o cidadão para contribuir na gestão da coisa pública, se seus problemas, até os de menor dimensão, precisam ser decididos no formalismo do Judiciário?

Não interessa à República brasileira inibir o protagonismo dos brasileiros, convertendo-os em membros de uma sociedade tutelada, a depender do Estado-juiz para a resolução de problemas que podem ser enfrentados na madura e saudável discussão dos próprios interessados. A solução negociada é muito mais ética que a decisão judicial. Esta é a mais forte, a mais poderosa, mas também a mais precária das respostas. A parte insatisfeita sempre poderá fazer ressurgir o conflito mal resolvido, pois a decisão nem sempre atinge o mérito e se resume a um aspecto processual, além do sabor frustrante de um julgamento epidérmico. Aquele que não enfrentou o cerne da controvérsia, manteve-se nos aspectos rituais e manteve incólume - ou até agravada - a desinteligência deflagradora da ação judicial.

Embora a teoria chame de "sujeito processual" a parte em litígio, na verdade o interessado representa um "objeto da vontade do Estado-juiz". Este é que tarifará a dor, o prejuízo, a angústia, a liberdade ou o patrimônio de quem recorre ao Judiciário. Iniciada a ação, o interessado não tem vez nem voz direta no processo. Resta-lhe aguardar, pacientemente, o advento da coisa julgada, após labiríntico percurso nos meandros das instâncias.

Promover a paz, evitar os conflitos, é dever de todos. Mas é obrigação precípua da comunidade jurídica. Todos devem contribuir para evitar lides temerárias, para promover a conciliação, para tornar o convívio algo respeitoso, se possível amistoso e saudável.

Postas as alternativas - manter o crescimento e a atual concepção do que deva ser o Judiciário ou proceder a um inadiável aggiornamento -, cabe indagar: o que se deve aguardar da Justiça brasileira?

O Judiciário é um Poder da República e se exterioriza em serviço público posto à disposição da população. O erário, que sustenta a máquina, é fruto da arrecadação tributária a todos imposta. Por isso a população titulariza o direito e, mais que isso, o dever de participar das discussões que redesenhem a Justiça. Ou se continua no curso de dilatação dimensional para fazer do Brasil um imenso tribunal, com um juiz em cada esquina, ou se ajusta o passo do Judiciário com a contemporaneidade.

Você, brasileiro, é que decide.