sábado, 9 de novembro de 2013

Negócio da China - EDITORIAL FOLHA DE SP


FOLHA DE SP - 09/11

Foi pouco proveitosa a reunião da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível, principal fórum bilateral para negociações, sobretudo comerciais, entre Brasil e China.

A comitiva encabeçada pelo vice-presidente Michel Temer fracassou em reabrir o mercado chinês à carne bovina --fechado desde o ano passado, após um caso do mal da vaca louca no Paraná--, não conseguiu promover a exportação de manufaturados brasileiros e ouviu pouco mais que promessas vagas sobre os demais temas.

Verdade que um protocolo fitossanitário abrirá caminhos para o milho brasileiro. As vendas desse produto para a China poderiam saltar de US$ 19 milhões (vendas do ano passado) para R$ 4 bilhões, segundo o Ministério da Fazenda.

A projeção, contudo, dificilmente se concretizaria em menos de cinco anos. Depende, além disso, da demanda chinesa --e nada sugere que o Brasil oferecerá atrativos maiores que os dos americanos em termos de preço e logística.

No mais, a comitiva brasileira repetiu inócuas reclamações sobre o desequilíbrio no comércio bilateral, em que o Brasil praticamente só vende soja, minério de ferro e petróleo (mais de 80% no ano passado) e compra quase tudo em manufaturados (95%).

A concentração das exportações em poucos produtos deixa o Brasil vulnerável a variações bruscas. Será grande o revés se a China, desde 2009 o principal parceiro comercial do país, conseguir diversificar seus fornecedores.

Por enquanto, o comércio bilateral continua crescendo. Até setembro, alcançou US$ 63,7 bilhões, aumento de 11% em relação ao mesmo período do ano passado, com um superavit de US$ 8,1 bilhões.

É enorme a importância dessa relação. Basta ver que o comércio com os EUA, segundo parceiro do Brasil, movimentou até setembro deste ano US$ 45,2 bilhões, com deficit de US$ 8,5 bilhões.

No próximo ano, o líder máximo da China, Xi Jinping, deverá visitar o Brasil. Será uma boa oportunidade para fazer as relações bilaterais superarem o atual estágio.

Atrair investimentos e diversificar a pauta de exportação, porém, demandará mais preparo e ousadia dos interlocutores brasileiros --no governo e no setor privado. Não é por acaso que observadores dessa parceria costumam dizer que não é o Brasil que está vendendo; é a China que está comprando.

O fim do acordo zero - KÁTIA ABREU


FOLHA DE SP - 09/11

Brasil pode e deve, no âmbito do agronegócio, encontrar novos caminhos para abrir o mercado chinês


Li na "Economist" da semana passada que a China não precisa se preocupar com a dependência das importações de grãos, que no passado consumiram até 25% da receita de suas vendas externas. Afinal, lembrou a revista, esse gasto representa, hoje, apenas 2% das receitas obtidas com suas exportações.

Depois desta semana em Pequim, em que participei de uma reunião com o vice-presidente Michel Temer e o presidente chinês, Xi Jinping, imagino que todos lemos o mesmo artigo. E com ele concordamos.

A China deve seguir produzindo o que tem de melhor e continuar comprando, do resto do mundo --inclusive do Brasil--, o que de mais seguro e competitivo produzimos: alimentos. O vice-presidente do país, Li Yuanchao, sugeriu até que deixássemos de lado o sinal vermelho e adotássemos apenas o verde nas relações bilaterais.

O verde dominou a pauta de Pequim. Conseguimos abrir a venda de milho e habilitar cinco frigoríficos que agora poderão exportar carne de frango para os chineses.

Autoridades do governo da China comprometeram-se a visitar o Brasil até meados de dezembro, para habilitar outros frigoríficos de aves e, enfim, suspender o embargo à carne bovina brasileira. A suspensão de apenas três frigoríficos provocou queda de 22% nas exportações de carne de frango no primeiro semestre deste ano.

Obstáculos à parte, a China é, hoje, nosso maior parceiro e o primeiro destino de nossas exportações. A despeito do pouco dinamismo do nosso comércio externo, nos últimos cinco anos, exportamos para o mercado chinês o equivalente a US$ 150 bilhões.

O aceno de sinal verde ao Brasil vem em boa hora. Basta lembrar que, em 2012, a China importou o equivalente a US$ 1,75 trilhão, do qual apenas US$ 41 bilhões vieram do Brasil. É chegado o momento de aproveitarmos o real potencial da China.

O atual governo chinês tem a meta de duplicar a renda per capita até o fim desta década. Está prestes a anunciar um conjunto de profundas reformas da economia, que, entre outras coisas, resulta- rá no crescimento da demanda geral por alimentos, em especial os itens mais nobres da dieta, como as carnes.

Nesse cenário promissor, é preciso articular um esforço de exportação muito mais organizado, envolvendo tanto o setor público --Ministérios da Agricultura, do Comércio Exterior, Itamaraty e Apex-Brasil-- quanto o privado. Além dos exportadores tradicionais e das tradings, novas agroindústrias de médio e pequeno porte devem ser incorporadas.

Desse modo, torna-se indispensável uma atitude do governo brasileiro, para livrar o setor produtivo dos enormes obstáculos de ordem burocrática e normativa.

O Brasil pode e deve, no âmbito do agronegócio, encontrar novos caminhos para abrir o grande mercado chinês. Até agora, as relações econômicas sino-brasileiras evoluíram de modo espontâneo, por iniciativa de algumas grandes empresas.

Ocorre, porém, que o aumento e a melhoria de qualidade dessas relações dependem de uma política deliberada de governo. E isso dentro de uma visão estratégica de longo prazo, que esteja aberta a considerar os interesses mútuos e a fazer concessões.

Um dos equívocos a serem corrigidos é o modelo tarifário, que fez com que o Brasil exportasse 12 vezes mais soja em grão do que farelo ou óleo de soja. A causa disso é a política insana que tributa o óleo exportado em 18% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e que isenta apenas a soja em grão.

No caso da China, enfrentamos a escalada tarifária na exportação de alguns produtos, como o café. O grão verde é taxado em 8%, o torrado, em 15%, e o café solúvel, em inacreditáveis 34%. Um claro desestímulo à agregação de valor que precisa ser revisto.

Este é o momento de construirmos, com os chineses, uma cooperação econômica mais madura e abrangente.

Na verdade, o que eu espero do novo chanceler, Luiz Alberto Figueiredo Machado, é que ele aproveite a oportunidade que a China nos oferece e nos retire do vergonhoso ranking do acordo zero.

A guerra contra as mulheres - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA


O GLOBO - 09/11

Aqui 50 mil mulheres são violadas por ano, e a sociedade assiste em silêncio



A história das mulheres é um longo percurso de lutas contra a humilhação e a brutalidade, escrevi há 30 anos. Não pensei que voltaria a escrever. Tudo parecia indicar que a sociedade brasileira saíra da Idade da Pedra com seus Brucutus arrastando as mulheres pelos cabelos e possuindo-as no melhor estilo animal.

Ilusão. A história das mulheres continua marcada pela humilhação e a brutalidade. É o que contam os dados do Fórum Nacional de Segurança Pública: 50 mil casos de estupro no Brasil no ano de 2012.

Este número aberrante não deveria cair no esquecimento como uma má notícia entre outras. Cinquenta mil americanos morreram na Guerra do Vietnam e isso mudou a América. Aqui 50 mil mulheres são violadas por ano e a sociedade assiste em silêncio.

Segundo a pesquisa, o número de casos vem aumentando. Os estupros de fato aumentaram ou o que aumentou foi sua notificação? Se assim for, é provável é que esses números sejam apenas a ponta do iceberg.

Um caso isolado de estupro é uma tragédia que o senso comum põe na conta de algum tarado que ninguém está livre de encontrar numa rua deserta. São psicopatas que agem por repetição à semelhança dos serial killers. Requintados torturadores, desprovidos de culpa ou remorso, são descobertos e presos. Quando saem, reincidem.

Cinquenta mil casos têm outro significado. A psicopatia não explica. Configura-se uma tara social, uma sociedade que convive com a violência sexual com uma naturalidade repugnante. São milhares de estupradores que, assim como os torturadores, transitam entre nós como gente comum. Estão nas ruas, nas festas, nos clubes, lá aonde todos vão, e passam despercebidos. Estão nas famílias e nas vizinhanças onde mais frequentemente agem — suprema covardia — aproveitando-se da proximidade insuspeita com a vítima.

Dissimulam seu alto potencial de crueldade no magma de desrespeito em que se misturam machismo, piadas grosseiras, gestos obscenos, aceitos como parte da cultura. A certeza da supremacia da força física, herdaram das cavernas. O desprezo pelas mulheres, aprendem facilmente em qualquer conversa de botequim. Ninguém nasce estuprador: torna-se.

O estupro é uma mutilação psíquica que a vítima carrega para sempre. Fecundação pelo ódio e contaminação pelo vírus do HIV são sequelas possíveis desse pesadelo. O medo ronda. Quantas mais estarão em risco? Pergunte-se a qualquer mulher se, uma vez na vida, se sentiu ameaçada pela violência sexual. Há uma guerra surda contra as mulheres. Quando as guerras de verdade se declaram, o estupro como arma se pratica às claras. Na Bósnia, a “limpeza étnica”, crime contra a humanidade, se fazia violando as mulheres.

Há décadas os movimentos de mulheres denunciam essa guerra surda. Estão aí as Delegacias da Mulher e a Lei Maria da Penha. O anacrônico Código Penal, que falava de crime contra os costumes, hoje capitula o estupro como crime hediondo. Aumentaram as penas e os agravantes. A Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres criou o número 180 para acolher as denúncias e promete espalhar Casas da Mulher em todos os estados.

Dir-se-ia, no entanto, que estupradores não temem a denúncia, a lei e a Justiça. Por que será? De onde lhes vem a sensação de que o que fazem não é crime e, se descobertos fossem, ficariam impunes?

A resposta está no sentimento de poder sobre o corpo das mulheres que nossa sociedade destila como um veneno. É esse caldo de cultura, em que a violência sexual de tão banal fica invisível, que estimula e protege os agressores, realimentando a máquina de fazer monstros. Some-se a isso uma espécie de pacto de silêncio que, salvo quando os dados gritam como agora, impede que se reconheça a gravidade do problema que, na sua negação da dignidade humana, é comparável à prática da tortura.

Os governos descuidam do indispensável amparo às vítimas. Ora, se não há reparação possível, deve haver acolhimento e socorro. Em todo o país os serviços de saúde pública capazes de oferecer a possibilidade de um aborto previsto em lei são ridiculamente insuficientes para atender às consequências desse massacre.

A mesma energia com que a sociedade brasileira condena a tortura é necessária para debelar a epidemia de crueldade. Três mudanças de comportamento se impõem, imediatas: o fim da tolerância com o desrespeito às mulheres, em casa e nas ruas; a inclusão para valer da prevenção e repressão da violência sexual na agenda da segurança pública; e a expansão dos serviços de amparo às vítimas. É o mínimo que o Brasil deve às mulheres.