domingo, 27 de outubro de 2013

Rentistas


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Desde tempos imemoriais sabe-se que grupos sociais com interesses comuns tendem a associar-se para, através do governo, extrair rendas imerecidas que geram ineficiência produtiva e têm seus custos diluídos por toda a sociedade. A diferença específica que as caracteriza é que elas não são obtidas nos mercados (onde há uma contrapartida do trabalho para obtê-las), mas no universo político, em troca de votos. Desde meados dos anos 60 os economistas têm dedicado muita atenção a tal fenômeno. Em 1974 foi batizado como "caçada à renda", por Anne Krueger.
Os "caçadores de renda" vivem comodamente entre nós sem serem percebidos. São os que obtêm: 1) proteção tarifária exagerada; 2) benefícios fiscais duvidosos; 3) empréstimos a taxas de juros negativas; 4) privilégios corporativos como servidores públicos dos três Poderes e das poderosas empresas estatais; 5) regulamentação duvidosa que finge proteger o consumidor, mas protege, de fato, o prestador de serviços; 6) contratos de concessão através de corrupção; 7) estranhos benefícios como os de "organizações não governamentais" ligadas a partidos políticos e financiadas pelo governo; 8) renda protegida pela correção monetária automática etc. A lista já é longa, mas longe de ser exaustiva.
É preciso dizer que os beneficiários dos programas civilizatórios de combate à miséria e à desigualdade, que sempre podem ser aperfeiçoados, não se enquadram nessa categoria.
Pois bem, uma das hipóteses de causalidade mais fortes para explicar a queda do interesse dos governos de engajarem-se seriamente em reformas estruturais, sem as quais não há desenvolvimento econômico no longo prazo, é que elas têm um custo elevado no curto prazo para os "caçadores de renda" bem sucedidos que conseguem apropriar-se de renda indevida graças à proteção do poder incumbente.
A hipótese causal é plausível. Por um lado, os benefícios das reformas estruturais se fazem sentir ao longo de alguns anos --talvez maior do que um mandato--, são difusos e não conseguem cooptar uma massa crítica para realizá-los. Por outro, os prejuízos para os "caçadores de renda" são concentrados e eles podem facilmente mobilizar, para defendê-los, as forças políticas que elegeram. É por isso que para enfrentá-los é preciso uma liderança firme que exponha com coragem os "caçadores de renda" e acorde a sociedade para os efeitos dessa extração que de forma quase invisível consome indevidamente os recursos para o seu desenvolvimento.
Não se trata, como alguns ingênuos acreditam, de grande batalha "ideológica", mas de comezinho interesse material: apropriar-se de recursos que a sociedade desavisada lhes transferiu sem perceber!
Antonio Delfim Netto
Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor catedrático na Universidade de São Paulo. Escreve às quartas-feiras na versão impressa da Página A2.

O mundo encantado da Doutora Dilma - ELIO GASPARI


O GLOBO - 27/10

No Brasil encantado em que vive o Planalto, as obras do trem-bala estariam adiantadas e ele rodaria em 2016, para a Olimpíada. Felizmente, continua no papel. Depois do Enem deste fim de semana haveria outro (ou já houvera). Infelizmente, foi só promessa da doutora Dilma e do ministro Fernando Haddad. Seu substituto, o comissário Mercadante disse que prefere gastar construindo creches. Por falar em creche, durante a campanha eleitoral a doutora prometeu mais seis mil (quatro por dia). Em abril ela disse o seguinte: "Queremos mais, muito mais. (...) Vamos chegar a 8.685 creches." A repórter Maria Lima fez a conta e mostrou que seria necessário entregar 31 novas unidades a cada dia até julho do ano que vem (13 por dia até o fim do governo). A doutora zangou-se: "Minha meta é 6.000 creches. Quem foi que aumentou para 8.000?" Ela.

Sua conta era a seguinte: em abril, havia 612 creches prontas, 2.568 em obras e 2.117 contratadas. Somando, chegava-se a 5.397. Se obras em andamento e contratadas são obras concluídas, 2010 foi um grande ano. Terminaram-se as obras da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e as águas do rio São Francisco foram transpostas. Promessas.

Para ficar na conta da meta de campanha, admitindo-se que a doutora já entregou 3.000 creches, até o fim do seu mandato precisa entregar pelo menos oito por dia.

O mundo encantado do Planalto desencadeia uma compulsão mistificadora. Se o governo terminar só 4.000 creches, atire a primeira pedra quem acha esse programa um fracasso. Será um grande resultado, que partiu de uma promessa exagerada. Trocando o mundo real (a obra entregue) pelo virtual (a promessa, ou o contrato), o comissariado intoxica-se numa euforia que desemboca na irritação. A última bruxaria do encantamento partiu da doutora Magda Chambrard, diretora da Agência Nacional do Petróleo. Ela anunciou que nos próximos 30 anos o campo de Libra renderá R$ 1 trilhão. Em maio passado a mesma doutora disse que "gostaria de ter mais Eikes" no setor petrolífero. Uma semana depois, começou o inferno astral de Eike Batista e de quem acreditou nele.

O encantamento desenvolve nos governantes uma síndrome de sítio, como se o mundo estivesse contra ele. De onde Maria Lima tirou a referencia às 8.000 creches? De uma fala da doutora.

AVISO AMIGO

Há sinais de que será necessária uma chacoalhada de pessoas e políticas na condução da economia.

Depois da repercussão dos leilões aguados e das dificuldades de Eike Batista, dividem-se os empresários em dois grupos: um torce por um novo quadro, outro quer que fique tudo como está, para continuar tirando fatias do presunto de um governo atrás de credibilidade.

ALSTOM

Ou o tucanato paulista tem uma estratégia capaz de causar inveja ao comissariado petista que pretende livrar seus caciques das penitenciárias pelo mensalão, ou está numa tática suicida, jogando o escândalo do propinoduto denunciado pela Siemens para dentro da campanha eleitoral do ano que vem.

Pelas provas, depoimentos e cifras, esse caso ultrapassa, de longe, o mensalão. Ali não há domínio do fato, o que há são fatos dominantes.

EM SILÊNCIO

A Arquidiocese do Rio tirou a sorte grande por trabalhar em silêncio. Há cinco anos ela fez uma faxina nas suas contas, afastou um padre que administrava seus bens e transferiu para uma casa em São José dos Campos o cardeal Eusébio Scheid, substituído por d. Orani Tempesta. Scheid deixou o apartamento de 500 metros quadrados (R$ 2,2 milhões) que fora comprado no Flamengo. O administrador, padre Edvino Steckel, foi acusado de ter gasto R$ 14 milhões em móveis, carros e enfeites. Em 2010 seu substituto foi detido no Galeão quando embarcava para Portugal com 52 mil euros nas roupas e nas malas.

Agora o papa Francisco detonou publicamente o bispo da Diocese alemã de Limburg, que torrou 31 milhões de euros num palácio episcopal.

JOHN KENNEDY

Começa na semana que vem a avalanche dos 50 anos da morte, no dia 22 de novembro, do presidente americano John Kennedy. Juntando mito e mistério, girará em torno de dois grandes temas: foi Lee Oswald, sozinho, quem o matou? E se ele não tivesse ido a Dallas, como ficariam os Estados Unidos?

O mistério do crime prosseguirá e metade dos americanos continuarão acreditando que houve uma conspiração. Chegará às livrarias a tradução de "11/22/1963", de Stephen King. (Na rede, em inglês, sai por US$ 12,38.) Conta a história de um sujeito que viajava no tempo e foi a Dallas para impedir que Oswald atirasse. Seu melhor momento está na conclusão, escrita com a ajuda de Richard Goodwin, que foi assessor de Kennedy. Ele especula como ficaria o país se a viagem a Dallas tivesse sido cancelada.

Existem 40 mil livros sobre o presidente. Os melhores estão mais para o estilo Roberto Carlos, e a maioria é ruim. Muito acima da média, está na rede por US$ 15,20 o "Camelot's Court - Inside the Kennedy White House" (A Corte de Camelot - Por dentro da Casa Branca de Kennedy"), de Robert Dallek.

Dallek, um moderado devoto da tese segundo a qual os tiros vieram de Lee Oswald, acrescenta mais um "se".

Kennedy teria sobrevivido "se" não estivesse com o colete ortopédico que mantinha-o com o tronco erecto. Por quê? Porque, ao levar o primeiro tiro, que entrou pelas costas e saiu pelo nó da gravata, teria se curvado e o novo tiro não lhe explodiria o crânio.

UMA AULA DE FHC PARA OS COMISSÁRIOS

Em agosto de 1995, na mesma arapuca em que caiu a doutora Dilma, o programa "Café com o Presidente", Fernando Henrique Cardoso disse o seguinte:

"Passados seis meses de governo, eu quero anunciar os primeiros resultados positivos dos esforços que nós estamos realizando para combater uma triste realidade brasileira: a mortalidade infantil. E quero começar falando do município de Jaramataia, que fica lá no interior do Estado de Alagoas. Até o ano passado, 333 crianças, de cada mil que nasciam, morriam antes de completar um ano de idade. De janeiro para cá, este número caiu para 3. Vou repetir, é isso mesmo, caiu para 3 crianças em cada mil."

Lorota do mundo encantado. Três crianças mortas para mil nascidas vivas, nem na Suíça. Esse era o número de mortes por diarreia em Jaramataia, onde a mortalidade caíra de 333 para 249. Quando a fraude foi revelada, a máquina do encantamento mobilizou-se, e uma médica recebeu um telefonema intimando-a a "não deixar o presidente passar por mentiroso".

FHC paralisou a máquina, dizendo mais ou menos o seguinte: "O número estava errado? Então estava errado, e nós não temos que responder à crítica".

No caso da doutora Dilma, o Planalto explicou que entre as 8.685 creches mencionadas por ela havia obras contratadas por Lula. Fica combinado assim.

O alvo duplo - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 27/10


Tatiana Farah é repórter experiente que não se assusta com pouca coisa. Ela estava na rodovia Raposo Tavares, a 54 quilômetros de São Paulo, ao meio-dia do sábado, 19, cobrindo a manifestação contra o uso de animais como cobaias. O primeiro tiro de borracha raspou sua cabeça. O segundo a atingiu nas costas. Depois, ela apanhou de cassetete, gritando que era repórter e estava ali a trabalho.

Tatiana, do GLOBO, é um dos 100 jornalistas agredidos nos últimos meses. Ainda está de licença médica, com hematomas das agressões a bala de borracha e cassetete. O caso dela foi um ataque, como os outros, totalmente desprovido de sentido.

— Eu estava no acostamento e logo depois da primeira bala, que por pouco não atingiu minha cabeça ou olhos, gritei que era jornalista, várias vezes, mas nada adiantou. Eles atiravam a esmo, em todas as direções. Então um policial veio em minha direção. Ele saiu da pista e foi para o acostamento, onde eu estava. Gritei que era jornalista. Ele puxou o cassetete e me bateu — relata Tatiana.

Tenho ouvido relato de repórteres nos últimos tempos e são sempre assim. A polícia ignora a identificação, ataca manifestantes indiscriminadamente. Tem usado métodos inaceitáveis. Os repórteres têm enfrentado também a hostilidade irracional e inaceitável de manifestantes. Mas há duas diferenças: o número dos repórteres atingidos pela polícia é maior; e a Polícia é paga com os nossos impostos e deveria estar treinada para situações de estresse na rua.

O país inteiro parece despreparado pára o que está acontecendo. As manifestações de junho mostraram o enorme descontentamento diante de vários problemas: a corrupção, a inflação, o colapso da mobilidade urbana, os serviços públicos deficientes. Foi uma dessas explosões inesperadas dos novos tempos digitais onde redes e ondas se formam de maneira rápida e caótica. Interesses difusos e a raiva contida explodem detonados às vezes por um pequeno evento, uma gota d"água. Nas democracias, cabe às instituições entender o que são esses movimentos sociais. E assim fazer avançar a democracia.

Depois de junho vieram os protestos por interesses mais localizados: médicos, professores, protetores de animais. Cada um quis passar sua mensagem,

Na maioria das vezes as manifestações começam pacíficas e, a partir de um momento, a violência da Polícia e de grupos de pessoas com o rosto coberto, atacando policiais ou o patrimônio, transformam as ruas em praças de guerras. Toda violência de manifestante tem que ser contida, mas a Polícia tem errado mais do que acertado. Em vez de contê-los, escala a agressão; em vez de isolá-los, ataca a esmo. E não há mais dúvida: mira a imprensa deliberadamente.

O país está falhando por não entender o momento. Todos temos dever de casa para fazer. Os jornais precisam refletir mais sobre o novo cenário, ouvindo as diversas vozes, iluminando o que está confuso. Além de treinar seus profissionais e protegê-los nesse tempo em que eles vão buscar informação e viram alvo duplo. A Polícia tem que usar inteligência para saber de onde vem e quem são de fato os que escolheram usar métodos violentos. As autoridades têm que parar de lavar as mãos. Está na hora de terem noção do risco que todos corremos.

Nenhuma escalada contra jornalista termina bem. Os jornalistas começaram a ser presos em outubro de 1975. Houve uma sequência de eventos. Até que Vladimir Herzog foi morto no dia 25. Hoje, vivemos em outro momento político, em pleno estado de direito. Mas o que está acontecendo é in-quietante, perturbador e perigoso demais para ser tratado como se fossem eventos isolados.

Houve um momento em que Tatiana, que havia se escondido debaixo de um carro junto com outros manifestantes, saiu e foi até a Polícia. Apresentou-se, disse que tinha se perdido de sua equipe e pediu proteção. Um policial olhou o ferimento das suas costas e disse que ela precisava ir para um hospital, mas recusou ajuda e a mandou sair dali. Para não ser novamente alvo ; da tropa de choque, ela se escondeu atrás de um barranco e viveu uma situação constrangedora:

— Estava com medo, no meio do mato, agachada, escondida como se fosse bandida fugindo da polícia.

É obrigação da boa imprensa olhar criticamente para si mesma e aperfeiçoar seu trabalho. O repórter é apenas o mensageiro e o país precisa muito entender a mensagem desse tempo de ruas tão confusas.