domingo, 27 de outubro de 2013

Progresso e asfixia - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 27/10

Santos, uma das mais antigas cidades do Brasil, e toda a Baixada que a margeia chegam a um momento decisivo. O intenso ciclo de desenvolvimento econômico, com as obras de expansão do maior porto da América Latina e a descoberta de petróleo no pré-sal da Bacia de Santos, ganha mais um vetor com a realização do leilão de Libra, na última segunda-feira.

"Toda a região está em obras", observa Renato Barco, presidente da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), responsável pela administração do Porto de Santos. O porto está sendo ampliado, processo que continuará por anos, mas que começa com grande atraso.

Nos últimos 11 anos, dobrou o volume de carga movimentada pelo porto. Passou de 53,5 milhões de toneladas em 2002 para 112,6 milhões de toneladas previstas até o final de 2013 (veja o gráfico). Com isso, o sistema de infraestrutura está estrangulado. Para Barco, o problema mais importante está na concentração de movimento no modal de transporte rodoviário e no acesso pelo sistema Anchieta-Imigrantes.

A intensificação das operações da Petrobrás na Bacia de Santos deverá pressionar ainda mais as malhas de serviço. Com uma unidade de negócios em Santos desde 2006, a Petrobrás deve concluir ainda este ano a construção do seu primeiro edifício administrativo, com 18 andares e capacidade para 2 mil funcionários. Mais duas torres equivalentes estão previstas para serem erguidas no bairro do Valongo. Também se esperam novas instalações de apoio offshore para empresas parceiras e fornecedores que devem se estabelecer nas vizinhanças, de olho em Libra e outros campos.

O movimento já produz impacto sobre o setor imobiliário. O Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP) calcula que 15.573 unidades de moradia foram lançadas na Baixada Santista entre março de 2010 e março deste ano.

"As perspectivas são positivas, mas precisamos nos estruturar para receber os futuros projetos de forma adequada", admite o prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa (PSDB). Em parceria com os governos federal e estadual, a prefeitura espera investir R$ 10 bilhões em infraestrutura e mobilidade urbana nos próximos dois anos.

Para Paulo Resende, especialista em Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, "a Baixada Santista entrará em colapso", caso não seja realizado planejamento integrado de mobilidade, ocupação do solo e adensamento imobiliário. "Santos não suporta mais crescimento. Como ocorreu em Macaé (RJ), base de operações da Petrobrás na Bacia de Campos, a cidade pode perder o controle da ocupação urbana", adverte.

Mesmo com toda a expectativa, Santos não deve ser o principal polo das operações do pré-sal, prevê Marcus D'Elia, especialista em Óleo e Gás do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). "O Porto de Santos não é adequado para a logística de abastecimento das plataformas e escoamento da produção." D'Elia afirma que os portos do Estado do Rio estão a distâncias mais curtas da Bacia de Santos e oferecem menores custos.

Em todo o caso, o progresso cobra preços.

Ciência ainda depende dos testes em animais (beagles)

Giovana Girardi - O Estado de S.Paulo
No final da década de 1950, quando bebês começaram a nascer com malformações congênitas após as mães terem tomado talidomida para combater enjoos matinais, médicos e pesquisadores ficaram em choque. Como isso podia estar acontecendo se em camundongos o sedativo tinha se mostrado seguro? Tão seguro, pensavam, que poderia ser usado até por gestantes.

O caso poderia ser hoje uma excelente justificativa para grupos de direitos dos animais – que pregam que testes em cobaias são inúteis porque as reações das drogas no organismos delas são muito diferentes do que no nosso – não fosse um detalhe. Essa falha acabou se tornando um dos marcos para que os estudos com animais se tornassem ainda mais rigorosos.
Diante do cenário de tragédia, com mais de 10 mil casos em cinco anos os cientistas voltaram aos testes com animais, dessa vez com coelhos e macacos, e viram que neles também havia malformação fetal, apesar de isso não ocorrer em roedores. 

A conclusão foi simples: o problema teria sido evitado com o teste em mais de uma espécie. Daí que surgiu o protocolo internacional, seguido por atualmente agências reguladoras de Estados Unidos, Europa e do Brasil, de que antes de uma nova droga chegar a humanos, é preciso fazer testes de segurança em pelo menos duas espécies, sendo uma de não roedores.

Essa história foi lembrada por alguns pesquisadores na semana passada por conta da invasão ao Instituto Royal e do subsequente bombardeio que as pesquisas com uso de animais sofreram – que levaram também a uma manifestação em peso da comunidade científica. 

Necessidade. Paixões e defesas de classe à parte, a mensagem que todas as entidades passaram é: em todo mundo se buscam alternativas para substituir o uso de animais e alguns métodos já eliminaram sua necessidade em algumas etapas, mas ainda não há o desenvolvimento completo de uma nova droga sem testá-la em bichos. 

E isso em todo o mundo. Mesmo a Europa, que é mais rigorosa nos cuidados com os animais e já proibiu seu uso em testes de cosméticos, utiliza por ano cerca de 12 milhões de animais em estudos farmacológicos, segundo o último relatório de estatísticas da União Europeia. Apenas chimpanzés são proibidos. Os EUA também estão encerrando estudos com esses grandes primatas.

Por outro lado, assim como evoluíram as pesquisas de fármacos, também se desenvolveu toda uma linha de estudos para melhorar os cuidados com os animais de laboratório, centrada principalmente em três pontos: buscar alternativas, reduzir o número de animais usados e aprimorar os métodos a fim de reduzir a dor e o sofrimento.

Foram essas diretrizes que, no Brasil, balizaram a criação da Lei Arouca, que regulamenta o uso de animais em pesquisa e entrou em vigor em julho de 2009. Ela criou, por exemplo, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), que credencia instituições que fazem estudos com cobaias e é responsável por zelar pelo bom tratamento delas.
Segundo Marcelo Morales, que coordena o Concea, desde sua criação várias denúncias de maus-tratos foram apuradas. 
“Chegamos a suspender as pesquisas em uma universidade inteira, que depois se regularizou.”

Entrave. De acordo com especialistas ouvidos pelo Estado, o maior entrave para eliminar o uso de animais é não se conseguir ainda simular por outros meios, com precisão, o complexo funcionamento do organismo. “É bem verdade que podemos minimizar o uso dos animais, mas eliminá-lo ainda não dá, porque não temos como ainda avaliar impactos do uso de longo prazo ou reprodutivos”, afirma Eliezer Barreiro, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos, do qual o Instituto Royal faz parte.

Alternativas em algumas etapas já conseguem reduzir o número de cobaias. Na Fiocruz, por exemplo, pesquisadores do grupo de estudos de Métodos Alternativos aos Ensaios Toxicológicos, ligado ao Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, buscam saídas para testes de irritação ocular de colírios e pomadas oftalmológicas. 

No processo-padrão, os primeiros testes seriam em coelhos. Cientistas descobriram que, usando córneas de bois abatidos, é possível saber se o produto promove irritação severa ou corrosiva. “Se der positivo, descartamos o produto e os coelhos são poupados. Se der negativo, os estudos seguem e testamos em animal”, diz o biólogo Octávio Presgrave.

Segundo o pesquisador, pela experiência do grupo, corroborada por dados da literatura médica, o uso de métodos alternativos pode levar a redução de 70% dos custo da pesquisa.

Células-tronco. Além de poupar os bichos, outras técnicas se mostraram até mais eficientes, como o modelo desenvolvido pelo biólogo brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia, em São Diego. Ele estuda autismo e diz que, apesar dos vários anos de estudos feitos por vários grupos em roedores, ainda não se chegou a um bom medicamento. A principal dificuldade é que não dá para realmente recriar o autismo nos animais.

Ele então teve a ideia de aproveitar células-tronco dos próprios pacientes para transformá-las em neurônios e testar drogas candidatas diretamente neles. “Nos pacientes, os neurônios fazem um número menor de sinapses do que em pessoas normais. Os neurônios que desenvolvemos mostraram o mesmo problema”, explica. Com essa mudança, disse, está sendo possível evitar o uso de milhares de cobaias por ano.

Parte das drogas que o pesquisador está testando para autismo está no mercado para outras doenças. Como elas já passaram por testes de segurança, Muotri espera que se elas se mostrarem efetivas nos neurônios criados, talvez seja possível mudar no futuro os protocolos. “Passaríamos direto para os testes em humanos.”

Este modelo pioneiro já foi adotado para outras doenças, como arritmias cardíacas. As células do coração desenvolvidas a partir das células-tronco agem como o próprio órgão, inclusive mostrando batimento cardíaco. Nesse caso, inclusive, elas apresentam a mesma arritmia. “É realmente uma cópia do que ocorre no indivíduo. Dá para checar direito nela diferentes remédios e ver como ela reage a cada um. É o futuro da medicina”, diz.

A liberdade é uma só - TONY BELLOTTO


O GLOBO - 27/10

Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé



O bebê de Salomão


A liberdade é uma só e não pode ser retalhada como o bebê de Salomão, aquele que quase foi repartido a golpe de espada entre as duas mulheres que reivindicavam sua maternidade. Estou ao lado dos que se opõem ao artigo do código civil que prevê para biografias a autorização prévia do biografado. A modificação da legislação no sentido de permitir que biografias sejam publicadas sem necessidade de autorizações é inevitável e natural numa democracia que se aperfeiçoa, e a intenção de suprimi-la não causaria celeuma caso o grupo de artistas que forma o movimento Procure Saber não tivesse se manifestado por sua permanência no código civil.


Édipo


A admiração, o respeito e a gratidão que sinto por Roberto, Erasmo, Djavan, Mautner, Chico, Caetano e Gil são incondicionais. Atribuo a eles grande parte da construção da minha visão de mundo, e pesa-me discordar publicamente de suas posições. O que gera discussão é ver aferrados a uma postura conservadora artistas historicamente comprometidos contra a censura e que sempre se pautaram pelas liberdades e ousadias estéticas e comportamentais. O que não justifica sua vilificação por parte da imprensa, tachando-os — de forma desrespeitosa e ressentida — de “censores” intolerantes. Não se pode resumir uma questão relevante a uma simples queda de braço entre celebridades e jornalistas. Não se trata de uma picuinha. Atentemos para não perder o foco do que está em jogo.


Controle absoluto


O ponto central da discussão é a contraposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Embora reconheça pontos plausíveis na argumentação do Procure Saber, não concordo que para preservar o direito à privacidade seja admissível relativizar ou cercear a liberdade de expressão. Em democracias mais aprimoradas, liberdade de expressão e direito à privacidade caminham juntos, ao passo que, em regimes intolerantes e totalitários, quanto mais se reprime a liberdade de expressão, mais se restringe o direito à privacidade. Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé. O controle absoluto da própria história não ocorre numa sociedade livre e democrática. Controle absoluto, só em regimes totalitários, e sempre como primazia do Estado e não dos indivíduos.


Referendo


Em 2005 justifiquei a um amigo meu voto a favor da comercialização de armas de fogo no Brasil: “A liberdade é uma só.” O amigo não se conformava com o fato de um adepto dos princípios da não violência de Gandhi e não afeito a armas de fogo votar a favor de sua comercialização. Segui com minha justificativa: “Quero viver num país livre em que as pessoas tenham liberdade para fazer, dizer e comprar o que bem entenderem.”


É preciso saber viver


Na minha concepção utópica seriam legalizados drogas, aborto e a eutanásia. Voto e serviço militar deixariam de ser obrigatórios. No meu Brasil idealizado, caberia ao Estado, em vez de punir e reprimir, amparar, informar e regular práticas de direito individual e uso e comercialização de substâncias tóxicas dentro das medidas do bom senso e da lei, como já ocorre com tabaco, álcool e algumas formas permitidas de interrupção de gravidez e morte assistida — desligamento de aparelhos em caso de morte cerebral, por exemplo.


Liberdade exige coragem. Numa sociedade livre algum desapego é recomendável, assim como doses cavalares de tolerância.


“Fahrenheit 451”


No romance “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury nos apresenta um futuro sombrio em que livros e pensamento crítico estão banidos da sociedade, num mundo em que opiniões próprias são consideradas antissociais. Entre 10 de maio e 21 de junho de 1933, logo depois da chegada de Hitler ao poder, nazistas organizaram em várias cidades alemãs grandes e festivas queimas de livros. Entre os autores “incinerados” estavam Thomas Mann, Walter Benjamin, Brecht, Musil, Freud, Einstein e Marx. O evento é reconhecido como um dos mais cruéis atentados à liberdade de expressão da História. Livros — mesmo os ruins — simbolizam liberdade de pensamento. Reprimir ou condicionar sua publicação soa como uma ameaça a um princípio fundamental da democracia.