sábado, 6 de outubro de 2012

Os descaminhos do dinheiro: a compra das eleições, do blog L. Dowbor



A grande corrupção é aquela que é tão grande que se torna legal. Trata-se do financiamento de campanhas. A empresa que financia um candidato – um assento de deputado federal tipicamente custa 2,5 milhões de reais – tem interesses. Estes interesses se manifestam do lado das políticas que serão aprovadas mais tarde. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição. O custo da campanha é cada vez mais descontrolado. O artigo é de Ladislau Dowbor.

No quadro acima, o crescente custo das campanhas nos Estados Unidos, segundo The Economist, Sept. 8th-14th p. 61


“The idea that in a democracy you should be able to trade your wealth
into more influence over what the government does is just wrong.”
Lawrence Lessig [1]

“Les vices n’appartiennent pas tant à l’homme qu’à l’homme mal gouverné”
Rousseau [2]

Transformar o exercício da justiça em espetáculo midiático não é correto nem ético. Fazê-lo em nome da ética, menos ainda. Para muita gente, parece tratar-se de uma catarse política, canalização de ódios acumulados. Não se resolve grande coisa desta maneira. e gera-se sim dinâmicas perigosas. E sobre tudo, canaliza-se toda a energia contra pessoas, obscurecendo os vícios do sistema. O sistema agradece, e permanece. A realidade, é que há um imenso desconhecimento, por parte de não economistas, de como se dão os grandes vazamentos de recursos públicos. 

Bem, vamos por partes. Primeiro, a grande corrupção, a grande mesmo, aquela que é tão grande que se torna legal. Trata-se do financiamento de campanhas. A empresa que financia um candidato – um assento de deputado federal tipicamente custa 2,5 milhões de reais – tem interesses. 

Estes interesses se manifestam do lado das políticas que serão aprovadas, por exemplo contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas. As empreiteiras e as montadoras agradecem. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele que estudou economia ou direito, e por tanto sabe fazer as contas e sabe quem manda, está preso numa sinuca. 

O próprio custo das campanhas, quando estas viram uma indústria de marketing político, é cada vez mais descontrolado. Segundo The Economist, no caso dos EUA, os gastos com a eleição de 2004 foram de 2,5 bilhões de dólares, em 2010 foram de 4,5 bilhões, e a estimativa para 2012 é de 5,2 bilhões. Isto está “baseado na decisão da corte suprema em 2010 que permite que empresas e sindicatos gastem somas ilimitadas em marketing eleitoral”. Quanto mais cara a campanha, mais o processo é dominado por grandes contribuintes, e mais a política se vê colonizada. O resultado é a erosão da democracia. E resultam também custos muito mais elevados para todos, já que são repassados para o público através dos preços. [3] 

Comentando os dados dos gastos corporativos na campanha eleitoral de 2010, Robert Chesney e John Nichols, da universidade de Illinois, escrevem que os financiamentos corporativos “se traduziram numa virada espetacular para a direita: a captura da vida política por uma casta financeira e midiática mais poderosa do que qualquer partido ou candidato. 

Não se trata apenas de um novo capítulo no interminável romance entre o dinheiro e o poder, mas de uma redefinição da própria política pela conjunção de dois fatores: o fim dos limites de doações eleitorais por parte das empresas e a renúncia por parte da imprensa ao exame dos conteúdos das campanhas. Resulta um sistema no qual um pequeno círculo de conselheiros mobiliza montantes surrealistas para orientar o voto para os seus clientes. Este ‘complexo eleitoral dinheiro-mídia’ constitui presentemente uma força temível, subtraída a qualquer forma de regulação, liberada de qualquer obrigação de prudência por uma imprensa que capitulou. Esta máquina é permanentemente mediada por cadeias comerciais de televisão que faturaram, em 2010, 3 bilhões de dólares graças à publicidade política”. [4] 

No Brasil este sistema foi legalizado em governos anteriores. A lei que libera o financiamento das campanhas por interesses privados é de 1997. [5] Podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa muito dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck, respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo, corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral)”. [6] 

E a deformação é sistêmica: além de amarrar os futuros eleitos, quando uma empresa “contribui” e por tanto prepara o seu acesso privilegiado aos contratos públicos, as outras se vêm obrigadas a seguir o mesmo caminho, para não se verem alijadas. E o candidato que não tiver acesso aos recursos, simplesmente não será eleito. Todos ficam amarrados. Começa a girar a grande quantidade de dinheiro no sistema eleitoral. Criminalizar as empresas, ou as pessoas, não vai resolver, ainda mais se os criminalizados são apenas de um lado do espectro político. É preciso corrigir o sistema. 

Mas custos econômicos incomparavelmente maiores resultam do impacto indireto, pela deformação do processo decisório na máquina pública, apropriada por corporações. O resultado, no caso de São Paulo, por exemplo, de eleições municipais apropriadas por empreiteiras e montadoras, são duas horas e quarenta minutos que o cidadão médio perde no trânsito por dia. Só o tempo perdido, multiplicando as horas pelo PIB do cidadão paulistano e pelos 6,5 milhões que vão trabalhar diariamente, são 50 milhões de reais perdidos por dia. Se reduzirmos em uma hora o tempo perdido pelo trabalhador a cada dia, instalando por exemplo corredores de ônibus e mais linhas de metrô. serão 20 milhões economizados por dia, 6 bilhões por ano se contarmos os dias úteis. Sem falar da gasolina, do seguro do carro, das multas, das doenças respiratórias e cardíacas e assim por diante. E estamos falando de São Paulo, mas temos Porto Alegre, Rio de Janeiro e tantos outros centros. É muito dinheiro. Significa perda de produtividade sistêmica, aumento do custo-Brasil. 

Este tipo de corrupção leva a que se deformem radicalmente as prioridades do país, que se construam elefantes brancos. A deformação das prioridades mediante desvio dos recursos públicos daquilo que é útil em termos de qualidade de vida para o que é mais interessante em termos de contratos empresariais, gera um círculo vicioso, pois financia a sua reprodução. 

Uma dimensão importante deste círculo vicioso, e que resulta diretamente do processo, é o sobre-faturamento. Quanto mais se eleva o custo financeiro das campanhas, conforme vimos acima com os exemplos americano e brasileiro, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, o que por sua vez reduz a concorrência pública a um simulacro, e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos permitirão financiar a campanha seguinte.

Se juntarmos o crescimento do custo das campanhas, os custos do sobre-faturamento das obras, e sobre tudo o custo da deformação das grandes opções de uso dos recursos públicos, estamos falando em muitas dezenas de bilhões de reais. Pior: corrói o processo democrático, ao gerar uma perda de confiança popular nos processos democráticos em geral. 

Não que não devam ser veiculados os interesses de diversos agentes econômicos. Mas para a isto existem as associações de classe e diversas formas de articulação. A FIESP, por exemplo, articula os interesses da classe industrial do Estado de São Paulo, e é poderosa. É a forma correta de exercer a sua função, de canalizar interesses privados. O voto deve representar cidadãos. Quando se deforma o processo eleitoral através de grandes somas de dinheiro, é o processo democrático que é deformado. 

A moral da história é simples. Comprar votos é ilegal. Vincular o candidato com dinheiro não é ilegal. Já comprar o voto do candidato eleito é de novo ilegal. A conclusão é óbvia: vincula-se os interesses do candidato à empresa, o que é legal, e tem-se por atacado quatro anos de votação do candidato já eleito, sem precisar seduzi-lo a cada mês [7]. O absurdo não é inevitável. Na França, a totalidade dos gastos pelo conjunto dos 10 candidatos à presidência em 2012 foi de 74,2 milhões de euros. [8]

A grande corrupção gera a sua própria legalidade. Já escrevia Rousseau, no seu Contrato Social, em 1762, texto que hoje cumpre 250 anos: “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o dono, se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever” [9]. Em 1997, transformou-se o poder financeiro em direito. O direito de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos. Ético mesmo, é reformular o sistema, e acompanhar os países que evoluíram para regras do jogo mais inteligentes, e limitaram drasticamente o financiamento corporativo das campanhas.

(*) Ladislau Dowbor, economista, é professor da PUC de São Paulo, e consultor de várias agências das NNUU. http://dowbor.org 

NOTAS
[1] “A ideia que numa democracia você deveria poder trocar a sua riqueza por maior influência sobre o que faz o governo é simplesmente errada” – Lawrence Lessig – Republic Lost: how money corrupts congress – and a plan to stop it – Twelve, New York, 2011, p. 313 

[2] “Os vícios não pertencem tanto ao homem, quanto ao homem mal governado” – J.J. Rousseau, Narcisse

[3] Ver dados completos em The Economist, Of Mud and Money, September 8th 2012, p. 61; Sobre esta decisão da corte suprema americana, Hazel Henderson produziu uma excelente análise intitulada “Temos o melhor congresso que o dinheiro pode comprar” (We have the best congress money can buy).

[4] Robert W.McChesney e John Nichols – Et les spots politiques ont envahi les écrans – Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, n. 125, Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p. 62 – A liberação do financiamento corporativo das campanhas eleitorais foi conseguida pelo lobby conservador Citizens United, junto à Corte Suprema dos Estados Unidos, em 21 de janeiro de 2010, em nome da “liberdade de expressão”.

[5] O financiamento está baseado na Lei 9504, de 1997 "As doações podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%, correspondente [à declaração] ao ano anterior", explicou o juiz Marco Antonio Martin Vargas, assessor da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo.” – Revista Exame, 08/06/2010, Elaine Patricia da Cruz, Entenda o financiamento de campanha no Brasil.

[6] “Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa Poder econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação parlamentar. Ver em Bruna Romão, Agência USP

[7] No plano propositivo, há um excelente trabalho de Lawrence Lessig, professor de direito da Universidade de Harvard, Republic Lost: how money corrupts Congress and a plan to stop it, Twelve, New York 2011, em particular p. 266 e seguintes. 

[8] Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p.11 

[9] “Le plus fort n’est jamais assez fort pour être toujours le maître, s’il ne transforme sa force en droit et l’obéissance en devoir”. Du Contrat Social, 1762. “Maître” em francês é muito mais forte do que “mestre” em português, implica força, controle.


Fotos: The Economist, Sept. 8th-14th p. 61 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Modernizar as carroças


Celso Ming - O Estado de S.Paulo
De tempos em tempos, o governo federal - não importa quem esteja no comando - adota um pacote de estímulos à inovação e ao conteúdo local da indústria automobilística.
O programa Inovar Auto, anunciado ontem pelo ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, pretende ser o novo marco do regime automotivo nacional. Simplificadamente, o governo impôs aumento de 30% no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para todos os veículos novos vendidos no País (inclusive os importados). Terão direito a descontos desse tributo sempre que atingirem metas de redução de consumo e de inovação.
Tomara que, desta vez, atinja seus objetivos e seja bem mais do que um esquema disfarçado de proteção ao setor - como tantos outros.
O programa reconhece implicitamente a existência do atraso. Não fosse isso, não precisaria incentivar a inovação e os avanços tecnológicos em eficiência e em segurança. Ou seja, a conversa começa com o entendimento de que a indústria automobilística brasileira segue sendo a mesma produtora de carroças denunciada em 1990 pelo então presidente Collor.
O setor não é só atrasado. É também fabricante de um produto caro demais, incapaz de competir no exterior. Apenas não é deslocado pelo produto importado no mercado interno graças à enorme proteção de que aqui desfruta e que, agora, deverá ser aumentada.
Seria ótimo se um programa de inovação desse porte pudesse ser inteiramente levado a sério. No DNA das montadoras instaladas no País, não há cromossomos responsáveis pelo desenvolvimento de tecnologia. A contrário do que acontece na China, na Coreia e na Índia, não existe carro projetado e desenvolvido aqui. O último foi o Gurgel, que, ainda assim, levava mecânica Volkswagen. Deixou de ser produzido em 1995, na unidade de Rio Claro.
Peça por peça, automóvel montado por aqui já vem pronto de fora. A indústria de autopeças e as próprias montadoras se limitam a adotar tecnologias, em geral, ultrapassadas. Os carros importados são mais modernos e mais baratos. Seria um portento ver o Uno Mille e a Kombi ganharem airbags, freios ABS e dispositivos antiderrapantes que atendam às novas exigências de segurança.
O novo regime automotivo é, ainda, repositório de boas intenções quanto ao conteúdo local. Essas novas exigências parecem desconsiderar que a indústria de veículos opera internacionalmente. Os carros são globais e, para garantir mercado, têm cada vez mais de contar com fornecimentos de peças e conjuntos de onde os custos forem mais baixos. Se quiserem ser exportadoras, as montadoras nacionais terão de adotar essa filosofia, não se aferrar a conteúdos locais.
E, caso seja para levar esse princípio às últimas consequências, não ficou claro quanto do valor de um veículo entrará na conta do que vai ser considerado produção nacional. Até agora, as montadoras vinham entendendo que despesas com propaganda e marketing e gratificação da diretoria podiam ser caracterizadas como de conteúdo local. Esse critério permanecerá válido? E será preciso ver quem é que, depois, desmontará um veículo, examinará uma peça e seus componentes e certificará que se trata de um produto made in Brazil ou do Mercosul.
Nada neste programa garante redução de custos ou barateamento dos veículos. É necessário ver o que funcionará na prática. Mais uma vez, tomara que dê certo.

O próximo passo do Regime Automotivo, por Luis Nassif


Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), Fernando Pimentel considera que o Regime Automotivo – anunciado ontem pelo governo – é apenas o primeiro passo para fortalecer e modernizar a indústria automobilística no país.
O enfoque principal foi direcionar os estímulos fiscais para a compra interna de componentes e para a modernização tecnológica, diz ele. Não se tem a pretensão de todas as autopeças serem fabricadas no país. Mas se pretende que o quarto mercado automobilístico do mundo tenha uma indústria à altura do seu tamanho.
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O Regime foi fechado em contato permanente com o Itamaraty, especialmente com os diplomatas que atuam na OMC (Organização Mundial do Comércio), especialmente Roberto Azevedo, para evitar qualquer questionamento internacional.
Ao contrário da Câmara Setorial da Indústria Automobilística, no governo Collor, o Regime Automotivo não pensou em uma especialização, que permitisse ao país ocupar nichos no mercado internacional. Isso porque, segundo Pimentel, as próprias indústrias já caminharam para tal, definindo os motores até 1.4 cilindradas como a vocação brasileira.
Aliás, no caso das inovações tecnológicas, há um enorme caminho a ser recuperado. O último motor projetado e desenvolvido no Brasil foi o fuel, da Fiat, há 17 anos.
Há a necessidade de se desenvolver uma nova geração de motores, substituindo o aço por alumínio e ligas metálicas. Nos últimos anos, a indústria mundial incorporou muita eletrônica, avanços que ainda não chegaram à produção interna.
Estávamos perdendo o bonde da história, diz Pimentel. Agora, o Regime Automotivo surge no momento em que novas montadoras – corenas e chinesas – estão se instalando no país.
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Mas o grande passo será a etapa seguinte, diz Pimentel.
Na cadeia automobilística existem as montadoras e os sistemistas – grandes empresas multinacionais que compram componentes da indústria de autopeças. Não são mais que dez sistemistas, de tal forma poderosas que pode-se planejar um automóvel simplesmente juntando todas elas e encomendando os sistemas necessários.
Nesse jogo de gigantes, quem fica espremido são os fabricantes de autopeças, em geral pequenas e médias empresas nacionais.
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E esse peixe pequeno, o fabricante de autopeças, está mal, diz Pimentel. Boa parte não consegue sequer acessar o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), por dívidas de imposto e falta do CND (Certidão Negativa de Débito).
Por isso mesmo, está sendo preparado o segundo tempo do Regime Automotivo, pelo MDIC e pelo BNDES, visando o fortalecimento do setor.
A ideia do Regime Automotivo é puxar a corda para cima, mas ajudando a carregar o peso em baixo, diz Pimentel. Caso contrário, haverá aumento das importações ou se irá espremer as margens dos pequenos para limites insustentáveis.
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Um dos subprodutos do Regime Automotivo será consolidar a indústria de autopeças como fornecedora preferencial para as montadoras na América do Sul.