segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Chega de masoquismo, por João Pereira Coutinho, na Folha


Jesus foi casado? Honestamente, não sei. Mas um pedaço de papiro levou uma estudiosa americana a dizer que sim. O papiro, provavelmente do século 4 d.C., seria parte de um evangelho apócrifo e prova substancial de que Jesus não teve vida celibatária.
Acompanhei as notícias com curiosidade mediana. Mas o que mais me espantou nessa história sobre a alegada mulher de Jesus foi a tranquilidade com que o Ocidente lidou com o assunto.
Não vi mortos. Não vi feridos. Não vi embaixadas atacadas e destruídas. Os cristãos não vieram para a rua pedir a morte da prof. Karen King por suas "blasfémias" contra Jesus. A universidade de Harvard não precisou de reforço policial para evitar um massacre.
Tudo nos conformes: a descoberta foi apresentada em Roma, discutida entre os eruditos, consta que posteriormente desacreditada. Ou não. Que interessa?
Karen L. King/Efe
Papiro cita 'mulher de Jesus'
Papiro cita 'mulher de Jesus'
Precisamente: não interessa. E é provável que, amanhã, surja um novo pedaço de papiro com uma nova mulher no enquadramento. Ninguém mata ou morre por causa disso. Evidências?
Talvez, leitor. Mas, às vezes, é preciso lembrar evidências para sabermos em que cultura estamos.
Se, por mera hipótese fantasiosa, houvesse uma descoberta semelhante e igualmente polémica sobre a vida do Profeta Maomé, não é preciso descrever o cortejo de sangue que viria a seguir. Um cortejo que, admito, já foi nosso e bem nosso: 500 anos atrás, o lugar da sra. Karen King não seria na universidade de Harvard. Seria na fogueira da Inquisição.
Mas passaram 500 anos. O Cristianismo teve a sua Reforma e Contra-Reforma; confrontou-se com o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. Depois de todas as guerras religiosas que devastaram a Europa moderna em nome da fé verdadeira, entendeu-se que a "fé verdadeira" é um assunto dos crentes, não do Estado.
A liberdade de culto passou a ser uma liberdade inegociável na maioria das sociedades ocidentais - a promessa de que ninguém seria perseguido por professar determinado credo. Mas a liberdade de pensamento e expressão também --a promessa de que ninguém seria perseguido por criticar ou ridicularizar a fé de terceiros.
Infelizmente, esta conquista secular foi esquecida pela justiça brasileira, que determinou que o Google retirasse do Youtube-Brasil o filme "A inocência dos muçulmanos", a pedido da União Nacional Islâmica. Porque o filme ofende os muçulmanos e alimentou atos de violência extrema em todo o Oriente Médio?
Acredito que sim. Como acredito que milhares de outros filmes, ou livros, ou quadros, ou peças de teatro, ou anedotas de café, ou meros comportamentos cotidianos ofendam muitos muçulmanos. O ponto, porém, não é esse.
O ponto está em saber como é possível que um tribunal de um estado laico possa exercer censura em nome de uma religião particular.
O filósofo francês Pascal Bruckner ajuda a entender o gesto. Sobretudo com o seu "A Tirania da Penitência - Ensaio sobre o masoquismo ocidental" (Difel).
O título e o subtítulo dizem tudo: o Ocidente vive hoje uma orgia de masoquismo que o faz ter repulsa de si próprio, dos seus valores fundamentais, das suas liberdades inegociáveis. E como explicar essa quebra de confiança, esse torpor niilista e relativista?
Pelo passado. Pela forma neurótica como o Ocidente retrata o seu passado. Quem somos nós para afirmar a importância dos valores ocidentais quando o Ocidente produziu incontáveis crimes - o genocídio de populações indígenas no Novo Mundo; o tráfico de escravos; o comunismo e o nazismo; o Gulag e o Holocausto?
Curiosamente, o Ocidente que gosta de se autoflagelar pelos crimes do passado é também o mesmo que se esquece da sua própria capacidade para os superar e reprimir.
Como afirma Pascal Bruckner, a Inquisição existiu; mas ela está diretamente ligada ao Iluminismo. A escravatura existiu; mas ela está diretamente ligada aos movimentos abolicionistas. O comunismo e o nazismo existiram; mas ambos estão diretamente ligados ao triunfo das democracias liberais no século 20.
A singularidade do Ocidente não está na criação de monstros --todas as civilizações o fizeram e fazem. A singularidade está na forma como foi capaz de gerar as armas, teóricas ou bélicas, para enfrentar e derrotar esses monstros.
Essa capacidade deveria ser causa de orgulho e confiança --e um imperativo suplementar para que o Ocidente defendesse os valores positivos em que acredita: a separação de poderes; a liberdade de pensamento e expressão; a tolerância perante diferentes concepções religiosas ou de vida; e etc. etc.
Fatalmente, não há orgulho nem confiança. Apenas uma vontade psicótica de alimentar um certo nojo-de-nós-próprios, ou seja, uma náusea profunda pelos direitos fundamentais que foram conquistados depois de sangue, suor e lágrimas, como dizia Churchill em discurso célebre.
A pergunta, formulada por Pascal Bruckner, é inevitável: como podemos ser respeitados pelos outros se já não somos capazes de nos respeitarmos a nós próprios?
Eis a pergunta que irá definir o futuro de uma civilização.
João Pereira Coutinho
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.

domingo, 30 de setembro de 2012

'E discípula, também'


O Estado de S.Paulo
JUAN ARIAS
A opinião pública teve sua atenção voltada para uma frase contida num fragmento de papiro escrito em copta, língua do antigo Egito, revelado por Karen King, da Universidade Harvard, em Boston, uma das maiores autoridades mundiais em história do cristianismo.
A frase é aquela em que Jesus, falando aos discípulos, refere-se a "minha mulher", confirmando a tese de que o profeta judeu, que deu origem ao cristianismo, seria casado.
Entretanto, no mesmo papiro, os especialistas decifraram outra frase que, na minha opinião, é ainda mais importante. É aquela em que Jesus diz aos discípulos: "Ela pode ser minha discípula também".
Ele se referia a Maria Madalena. Por que esse "também"? Explico.
A frase nos leva a pensar que o papiro seria um fragmento de um evangelho gnóstico que remonta ao século 2º, e não de um evangelho apócrifo, como alguns quiseram pensar para diminuir a importância do mesmo.
Os evangelhos gnósticos são importantíssimos para se conhecer o nascimento do cristianismo e as primeiras lutas dialéticas entre as correntes filosóficas e teológicas das primeiras comunidades cristãs. Revelam uma corrente de pensamento alheia ao judaísmo clássico e ortodoxo que acabou fazendo parte do primeiro ideário cristão. E é nesses evangelhos que os apóstolos falam abertamente do matrimônio de Jesus com a gnóstica iluminada Maria de Magdala e das disputas e ciúmes dos apóstolos, concretamente de Pedro, em relação ao tratamento íntimo que o Mestre dava àquela mulher, que provavelmente nem era judia e a quem, segundo afirma Pedro, "ele revelava segredos" que escondia deles.
Os apóstolos não viam com bons olhos o fato de Madalena ser tida como a escolhida entre as mulheres (essas sim, judias) que acompanhavam Jesus como uma espécie de discípulas nas peregrinações. Madalena era aquela com quem ele mais se abria sobre as novas ideias do Reino de Deus que pregava pelas aldeias da Galileia.
O que ocorre é que Maria de Magdala - que um dia foi confundida até mesmo pela Igreja como a prostituta dos evangelhos - era diferente. Com ela Jesus mantinha uma intimidade especial.
Essa frase do papiro de Karen, "ela pode ser minha discípula também", é um eco das disputas com os apóstolos sobre a admissão daquela mulher gnóstica na comunidade apostólica. Jesus confirma que ela, apesar de pertencer provavelmente a uma seita diferente da judaica tradicional, podia ser "também", ou igualmente, sua discípula.
Hoje sabemos a importância do complexo pensamento filosófico e teológico gnóstico na formação do cristianismo original e o papel proeminente de Maria Madalena, a quem, segundo os evangelhos gnósticos, Jesus "beijava na boca". Uma expressão que, além da intimidade afetiva e sexual, revela um importante simbolismo, pois segundo os gnósticos o conhecimento se transmite através do beijo.
A diferença fundamental entre o pensamento oferecido ao cristianismo primitivo por Paulo de Tarso e o pensamento gnóstico reside no fato de que, enquanto para o judeu perseguidor de cristãos convertido ao cristianism, e depois perseguidor de judeus, o que importa é a "teologia da cruz", segundo a qual o mal do mundo tem origem "no pecado". Para os gnósticos, ao contrário, o mal do mundo decorre da "falta de conhecimento" e sabedoria. De algum modo, a teologia de Paulo, que acabou triunfando, se fundamenta no sacrifício, ao passo que a gnóstica se baseia na felicidade que nasce da sabedoria e compreensão do mundo.
A corrente gnóstica era mais feminina e liderada por Maria Madalena. Por isso, nas primeiras comunidades cristãs no século 1º, a importância das mulheres se tornara fundamental. As primeiras eucaristias foram celebradas nas casas e elas, como os homens, eram sacerdotisas e até bispas, como se desprende das pinturas do século 3º existentes em algumas catacumbas de Roma que somente especialistas podem ver.
Mas aos poucos o pensamento teológico de Paulo de Tarso, bem mais misógino, acabou por se impor, nascendo assim a hierarquia masculina, que acabou relegando as mulheres a segundo plano.
Foi então que a corrente gnóstica passou a ser perseguida e seus escritos, queimados - menos alguns, que monges esconderam, enterraram e só foram descobertos há algumas décadas. Entre eles está o Evangelho de Maria Madalena, escrito por ela.
Nos primeiros séculos os evangelhos gnósticos tinham a mesma importância que os quatro canônicos e isso é demonstrado pelo fato de os padres da Igreja os qualificarem em seus escritos como autênticos. Sabemos da existência de alguns desses evangelhos, desaparecidos para sempre, justamente por essas citações.
Poucos teólogos cristãos e sobretudo estudiosos da Bíblia duvidam do matrimônio de Jesus com a gnóstica Maria Madalena. A igreja oficial sabe e por isso não se atreve a condenar os livros que defendem essa tese, como o meu, Madalena, o Último Tabu do Cristianismo, que prova a intimidade de Jesus com aquela mulher de Magdala com uma análise hermenêutica não apenas dos evangelhos gnósticos, mas também dos canônicos.
Uma prova irrefutável é o fato de que Jesus, recém ressuscitado, não apareceu para Pedro e os demais apóstolos, como seria normal, mas para Madalena, quando naquele tempo uma mulher não era confiável nem como testemunha em juízo. Por isso Pedro não acredita em Madalena e ele próprio se dirige à tumba para confirmar que ela estava vazia.
Até São Tomás de Aquino passou toda a vida perguntando-se por que Jesus não apareceu primeiro para Pedro. Pela simples razão de que Madalena era não só sua esposa, mas a discípula predileta, a depositária dos seus segredos. Lendo meu livro, o escritor José Saramago, Nobel de Literatura, disse a sua mulher, Pilar del Río: "É evidente. Se, ao morrer, eu pudesse aparecer para alguém, o faria para você, a pessoa a quem mais amo".
Hoje a Igreja, que mais do que fundada por Jesus o foi por Paulo de Tarso, seria muito diferente caso tivesse prevalecido a corrente gnóstica que esteve a ponto de eleger um dos primeiros papas.
E as mulheres não continuariam relegadas pela Igreja, impossibilitadas de exercer o sacerdócio, quando no cristianismo mais original o papel delas era fundamental.
Jesus, na realidade, jamais pensou em fundar uma nova religião. Era judeu, de nascimento e fé. Seu desejo era que o judaísmo, a primeira grande religião monoteísta da história, não ficasse restrito apenas aos judeus, mas abrisse suas portas para todos, pois Deus era "pai de toda a humanidade", e não só do povo eleito.
As ideias originais e revolucionárias de Jesus, que as mulheres então compreendiam melhor do que os homens, foram se perdendo ao longo dos séculos a ponto de um teólogo latino-americano chegar a dizer que as ideias do profeta de Nazaré eram tão subversivas que "criaram uma Igreja para combatê-las".
Jesus queria que Madalena fosse "também" sua discípula, como os discípulos varões. Daí a importância do papiro de Karen.
Ele não fundou uma Igreja hierárquica, muito menos machista. Os evangelhos inspirados e aprovados pela Igreja o descrevem como um judeu pouco ortodoxo, "amigo de pecadores e prostitutas". Jesus amava as mulheres e fez delas o gérmen da sua nova doutrina, a doutrina do amor universal, do perdão e da felicidade.
Aos poucos aquela ideia original foi morrendo pelo caminho, sob o peso de uma Igreja copiada do Império Romano, masculina, de celibatários, mais baseada no Direito Canônico, nas leis e proibições do que no "Espírito que sopra em toda parte" de que Jesus falava e que já naquela época as mulheres entendiam melhor que os apóstolos. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Por que os paulistanos preferem carro ao metrô?


 Estado de S.Paulo
O transporte público de São Paulo já foi responsável por 70% das viagens diárias. Esse porcentual caiu gradativamente, conforme a frota de carros aumentou, a ponto de, em 1997, responder por menos da metade das viagens diárias.
O que voltou a torná-lo atrativo foi a integração tarifária entre trens, metrô e ônibus, que ocorreu em 2004. Com a tarifa mais barata, mais pessoas voltaram ao transporte público e, atualmente, cerca de 56% dos habitantes da metrópole fazem viagens sem carro.
Em tempos de IPI reduzido e venda de automóveis batendo recorde sobre recorde, listamos cinco motivos que fazem as pessoas se afastarem dos trilhos e enfrentar os congestionamentos - e os picos nas sextas com chuva. / ARTUR RODRIGUES e BRUNO RIBEIRO