terça-feira, 29 de julho de 2014

A fera está solta, do Blog Frei Betto

Apesar de o dragão escancarar a bocarra, acredito que o governo não contribuirá para aumentar a sua fúria, e tomará medidas paliativas, como evitar reajustar o preço dos combustíveis


Eis que desperta o dragão da inflação! E começa a es­capar do controle do governo, livre da precária jaula das po­líticas monetaristas que se recusam a mexer nas arcaicas es­truturas que sustentam a sociedade brasileira.

A principal vítima do dragão desenjaulado é a classe média que, graças ao governo petista dos últimos 11 anos, ampliou o seu contingente. Hoje, a população brasileira é de 200 milhões, dos quais 108 milhões estão na classe média, integrada por famílias com renda mensal de R$ 1.216 a R$ 4.256.

Graças às políticas sociais, à facilidade de crédito, à de­soneração de produtos da linha branca e, sobretudo, ao aumento real do salário mínimo a cada ano, 55 milhões de brasileiros migraram, na última década, da classe po­bre para a média. Esses emergentes movimentam, por ano, R$ 1,17 trilhão.

Diante do acúmulo da inflação, que subiu 6,28% de maio de 2013 a maio deste ano e chegou a 8,99% no setor de ser­viços, a fera à solta já abocanhou, no mesmo período, R$ 73,4 bilhões. O cinto começa a apertar...

A mordida do dragão só não foi maior porque, apesar da jaula de portas abertas, a renda da classe média continua a subir. Até quando? Pelo menos 10% das pessoas que inte­gram essa faixa de renda começam a escorregar para baixo, rumo à pobreza, atraídas pela voracidade do dragão e pe­los juros altos.

O governo, mestre em pirotecnia economicista, sabe que se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come. Se não elevar os juros (o que agora se evita), o dragão sai da jaula. Se ele­var, o dinheiro fica mais curto, pois o crédito encarece e as dívidas engordam.

O brasileiro está mais cauteloso com as compras. A farra do carro novo perdeu fôlego. É verdade que a classe média, que abrange 58% da população, ainda anda faceira: viagens ao exterior, academia de ginástica, salão de beleza, sho­pping center...

Isto é mérito do governo: dentro de qualquer barraco de favela são encontrados telefones celulares, TV em cores, ge­ladeira, máquina de lavar e fogão. E talvez, lá no pé do mor­ro, um carro estacionado. A vida dentro de casa é bem mais confortável do que fora...

Se a classe média brasileira fosse um país, ela integra­ria o G-20, o grupo das 20 nações mais ricas do mundo. Figuraria em 12º lugar em população e seria a 18ª nação em consumo. Porém, a desigualdade é gritante. Basta di­zer que 43% dessa classe emergente habitam o Sudeste do Brasil.

Se em nossos estádios reina a Fifa, em nossa gente a situa­ção não está nada fofa. Como canta Zeca Pagodinho, “quem nunca comeu melado se lambuza até o pé”. O brasileiro con­quistou direitos pessoais nessa última década. Mas cadê os direitos sociais? A saúde e a educação de qualidade, o sane­amento, a segurança?

Cada trabalhador destina 150 dias de trabalho apenas pa­ra pagar seus impostos. A mobilidade urbana está cada vez mais engessada: carros demais, ruas de menos; ônibus pre­cários e caros; metrôs curtos e superlotados, insuficientes para absorver tantos passageiros nas horas de pico.

Essa dificuldade de transporte afeta o trabalho (atrasos, perda de tempo no trânsito, greves periódicas) e a vida fa­miliar. Com menos tempo para curtir a família, o brasi­leiro exige que a escola, além de instruir, também eduque seus filhos...

Não seria mais sensato deputados e senadores defende­rem, não a redução da maioridade penal, e sim da jorna­da de trabalho, de modo que nossas crianças e jovens con­vivam mais com os pais? Medida que, aliás, multiplicaria o número de empregos.

Ora, estamos em ano eleitoral. Apesar de o dragão escan­carar a bocarra, acredito que o governo não contribuirá pa­ra aumentar a sua fúria, e tomará medidas paliativas, como evitar reajustar o preço dos combustíveis.

Contudo, terá que suportar a pressão das categorias profissionais que se julgam no direito de ver seus salá­rios corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Am­plo (IPCA). E haja manifestações, paralisações e greves! Aliás, um direito constitucional, por mais que incomo­dem. E ninguém ostenta mais pós-doutorado em greves do que o PT.

Frei Betto é escritor, autor de O que a vida me ensinou (Saraiva), entre outros livros.

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