quarta-feira, 16 de julho de 2014

A Cantareira, a figueira, ética e estética


POR MAURÍCIO TUFFANI
14/07/14  13:21

Resto de figueira derrubada em 6 de julho no Ipiranga, em São Paulo, para dar lugar a um empreendimento imobiliário. Imagem: Sara Santos/Divulgação
Resto de figueira derrubada em 6 de julho no Ipiranga, em São Paulo, para dar lugar a um empreendimento imobiliário. Imagem: Sara Santos/Divulgação
O esgotamento do sistema Cantareira e o corte de uma enorme figueira para dar lugar à construção de um lançamento imobiliário em São Paulo, no bairro do Ipiranga, no domingo retrasado (6.jul), são dois aspectos de uma mesma cultura predatória e irresponsável de ocupação do solo. Independentemente da incompetência do governo estadual paulista para se antecipar à estiagem que se prolonga desde o ano passado, já não tem mais cabimento continuar a abastecer a qualquer preço uma metrópole que cresce verticalmente para inflar sua densidade demográfica e reforçar os desequilíbrios sociais e regionais do país.
Restou preso ao solo o grosso toco de tronco da imponente Ficus elastica, despedaçada apesar de sua importância ambiental —mesmo não sendo nativa—, paisagística e histórica e da indignação de muitos moradores. E com aval da prefeitura paulistana, escorado em uma ridícula, estreita e ultrapassada concepção de “compensação ambiental”. Basta definir um terreno qualquer, o mais próximo possível, para plantar algumas dezenas de mudas e fantasiar a operação com frases feitas de manuais de sustentabilidade.
Se fosse possível conservá-lo, o toco permaneceria como um monumento a um artista não desconhecido, mas difuso, que é a irresponsabilidade ambiental crônica do poder público e da sociedade civil. Ironicamente, o complexo de cimento a ser erguido naquele local já tem o nome “Artisan”, que em inglês e francês significa artesão. A “arte” da etimologia desse termo tem empesteado esta e outras metrópoles brasileiras com combinações horrendas de moradias, transporte e locais de trabalho.
Estamos muito acostumados, infelizmente, a não juntar as pontas dessa irresponsabilidade ambiental, social e estética. Nesta segunda-feira (14.jul), por exemplo —e só o aponto por ser o mais recente na imprensa, pois eu também já incorri nisso—, o telejornal “Bom Dia Brasil”, da TV Globo, mostrou o corte dessa mesma figueira e, poucos minutos depois, sem estabelecer nenhuma relação com o fato, noticiou o esvaziamento das represas do sistema Alto Tietê, que também abastece a Grande São Paulo.
As outras pontas soltas não são apenas as metástases de cimento antiestéticas e disfuncionais. No caso de São Paulo, há também o transporte urbano caótico e socialmente injusto, além do desperdício de uma gigantesca quantidade de água —maior que a perdida na rede de distribuição— que é usada para impulsionar os maiores dutos de esgotos a céu aberto que são o rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí. Ou seja, a cidade não consegue mais trazer água do sul de Minas, mas continua a dissolver esgoto com grande parte das chuvas que caem em outras regiões.
“A aparência de São Paulo é horrorosa e poderia ser diferente. A beleza, sim, é valor democrático”, afirmou o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, em sua coluna “Feiura paulistana”, na Folha, um dia antes de a imponente figueira ser derrubada no Ipiranga.
O advogado e colunista está em boa companhia. Em 1973, no mesmo ano em que ganhou o Prêmio Nobel por seus estudos sobre o comportamento animal, o biólogo e etólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), afirmou;
“A total cegueira da alma para o belo, que se propaga rapidamente em nossos dias em toda parte, é uma doença mental que deve ser levada a sério, pois acarreta uma insensibilidade pelo que é eticamente condenável.”*
Para saciar a sede dessa arte hedionda, já se pretende usar também a água do volume morto do sistema Alto Tietê, repetindo a mesma forma usada com o sistema Cantareira.
* Konrad Lorenz, “Os Oito Pecados Mortais do Homem Civilizado (tradução de Henrique Beck), Editora Brasiliense, São Paulo, 1988, p. 31.

Os oito pecados capitais segundo Konrad Lorenz

“Seria presunçoso acreditar que aquilo que cada um sabe não é compreensível à maioria das outras pessoas. O conteúdo deste livro é bem mais fácil de assimilar, em seu conjunto, do que o cálculo integral ou diferencial que todo aluno de curso superior é obrigado a aprender. Todo perigo perde muito de seu impacto assustador, se conhecemos suas causas.”
Há quarenta anos, o professor e naturalista Konrad Lorenz, que ganharia mais tarde um prêmio Nobel, publicou um texto sobre os oito pecados capitais da humanidade civilizada. Nele, o grande pesquisador comportamental apresenta sua opinião sobre as mais importantes ameaças do futuro da humanidade. O texto, que fora redigido por ocasião do 70º aniversário do seu amigo, Edouard Baumgartner, foi publicado na edição comemorativa de uma revista que lhe era destinada (Editora Anton Hain, Meisenheim, 1971); posteriormente apareceu como livro de bolso da série Piper e teve uma repercussão inesperada.

Konrad Lorenz
Já no início de sua introdução, Lorenz afirma que
“A humanidade contemporânea está em perigo. Ela corre numerosos riscos que o naturalista e o biólogo são os primeiros a perceber, quando ainda escapam ao olhar da maioria dos homens. É portanto dever do sábio tocar a campainha de alarme, ao invés de limitar-se, como é seu costume, à investigação dos fenômenos recém-descobertos.”
Não é por acaso que estas teses apareceram logo após a Revolução de 68 e após o início da década esquerdista que assolou o Ocidente. Elas foram uma reação a uma ideologia deformada e seus objetivos utópicos: o liberalismo descompromissado e o crescente individualismo de cada um, que desconhece qualquer comunidade e só tem olhos para a luxúria. O apelo do naturalista é ainda hoje bastante atual, como na época de sua primeira publicação, talvez ainda com maior relevância. Por isso recordamos seus pontos principais.
Como os oito principais pecados capitais da humanidade contemporânea, que ao longo do tempo irão condená-la, Lorenz reconheceu as seguintes processos:
1. a superpopulação
2. a devastação do espaço vital
3. a corrida disputada pela humanidade com ela mesma
4. o desaparecimento de todos os sentimentos fortes e de toda e emoção
5. a degradação genética
6. a ruptura das tradições
7. a receptividade crescente da humanidade à doutrinação
8. o armamento nuclear
Não é por acaso que os pontos 5 até 7 ocupam o dobro de páginas do que os outros. Isso já mostra formalmente sua maior importância. Abaixo segue o resumo de cada capítulo feito pelo próprio Lorenz ao final de seu livro.
1. A superpopulação da terra, que leva cada um de nós a se defender da profusão de contatos sociais de uma forma profundamente desumana e que, pelo amontoar de numerosos indivíduos num espaço restrito, provoca inevitavelmente a agressividade.
2. A devastação do meio ambiente natural, que atinge não só o mundo exterior no qual vivemos, como destrói no homem todo respeito pela beleza e pela grandeza de uma criação que o ultrapassa.
3. A corrida disputada pela humanidade com ela mesma, que o desenvolvimento da tecnologia torna, para nossa infelicidade, cada dia mais rápida. Essa obrigação de exceder torna os homens cegos aos valores verdadeiros e os priva de tempo para pensar, atividade indispensável e humana por excelência.
4. O desaparecimento de todos os sentimentos fortes e de toda e emoção, devido ao enfraquecimento, e o progresso da tecnologia e da farmacologia provocando uma intolerância crescente a tudo o que possa provocar o mínimo desagrado. O desaparecimento simultâneo da capacidade humana de alcançar uma felicidade que só pode ser alcançada vencendo obstáculos, ao preço de muito esforço. O ritmo, estabelecido pela natureza, de contrastes balanceados entre o fluxo e o refluxo dos sofrimentos e das felicidades se atenua até uma oscilação imperceptível, acarretando um tédio mortal.
5. A degradação genética. Fora do “sentido natural do direito” e de alguns restos herdados do direito corrente, não existem, no interior da sociedade moderna, fatores de seleção capazes de exercer sua pressão no desenvolvimento e na manutenção das normas de comportamento, embora elas se tornem cada dia mais necessárias devido ao desenvolvimento da sociedade. É impossível que infantilismos, responsáveis pela transformação de numerosos jovens rebeldes de hoje em parasitas sociais, sejam de origem genética.
6. A ruptura das tradições, resultante do fato de termos atingido um ponto crítico em que as jovens gerações não conseguem mais se entender culturalmente com as velhas, e ainda menos se identificar com elas, passando então a tratá-las como um grupo
étnico estrangeiro e a enfrentá-las com um pódio nacional. As razões dessa perturbação da identificação originam-se antes de mais nada na falta de contato entre pais e filhos, o que já nos bebês provoca sintomas patológicos.
7. A receptividade crescente da humanidade à doutrinação. O aumento do número de homens reunidos num só grupo cultural, acrescido do extremo aperfeiçoamento dos meios técnicos levam a possibilidades, nunca antes atingidas na história humana, de influenciar a opinião pública e de criar uniformemente opiniões. Devemos além disso ressaltar que o poder de sugestão de uma doutrina, firmemente aceita, progride talvez em progressão geométrica em relação ao número de crentes. Já agora, em certos lugares, um indivíduo que se esquiva deliberadamente à influência da “mídia de massa”, da televisão, por exemplo, é considerado um caso patológico.
Os efeitos despersonalizantes desses meios são recebidos com prazer por todos aqueles que querem manipular as multidões. Pesquisas de opinião, técnicas publicitárias e uma moda habilmente divulgada permitem aos magnatas da produção – de um lado da cortina de ferro – e aos funcionários – do outro lado – exercer um idêntico poder sobre as massas.
8. O armamento nuclear, que faz pesar sobre a humanidade um perigo mais fácil de evitar que os sete processos ameaçadores descritos acima. Esses fenômenos de desumanização, dos quais falamos do primeiro ao sétimo capítulo, são favorecidos por uma doutrina pseudodemocrática que afirma que o comportamento social e moral do homem não é absolutamente determinado pela evolução filogenética do seu sistema nervoso ou de seus órgãos sensoriais, mas é influenciado unicamente pelo “condicionamento” sofrido ao longo de sua ontogênese em virtude do seu ambiente cultural.

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