sábado, 1 de agosto de 2020

Império não é avô da ditadura militar nem bisavô de Bolsonaro, diz professor, FSP


Christian Edward Cyril Lynch

Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro (1822-1930)’ (ed. Alameda), entre outros livros

[resumo] Em comentário a artigo sobre a nostalgia imperial publicado na Ilustríssima, professor defende que uma leitura mais atenta às complexidades do passado evitaria visões dicotômicas e a projeção de preferências ideológicas atuais sobre o período do Império, tratado ou como maravilhoso reinado de Pedro 2º ou como regime de horror do latifúndio escravista.

Com a subida de Jair Bolsonaro ao poder, mais do que tempos conservadores, vivemos tempos reacionários. Sua franja mais radical se comunica por uma simbologia sincrética, que remete ao imaginário de uma “civilização judaico-cristã ocidental” pré-iluminista, baseada em um ideal de uma comunidade de base local, hierárquica e religiosa.

Os reacionários de hoje se imaginam nobres cavaleiros templários, que deixam a família para lutar contra os hereges esquerdistas, muçulmanos ou chineses. Na América, que não teve Idade Média, os conservadores norte-americanos adaptaram aquela utopia à sua realidade —recorreram à mitificação das comunidades coloniais, ao cenário agreste do faroeste e à memória dos estados sulistas, identificados com o agrarismo e a escravidão.

Ilustração do imperador dom Pedro 2º
Ilustração do imperador dom Pedro 2º - Reprodução/Enciclopédia Ilustrada do Brasil

No Brasil, onde até o conservadorismo é importado, os reacionários encontram maiores dificuldades. No fundo, sua utopia remonta à mitologia bandeirantista do século 18, para quem a boa sociedade era formada por senhores de engenho paternais e bandeirantes intrépidos. Na prática, eles fazem uma incrível salada de personagens e símbolos, que remetem ao regime militar e ao Império.

É dessa apropriação do imaginário imperial no debate contemporâneo que trata este artigo, ampliando a discussão travada por colegas na Ilustríssima da semana passada.

A história política tradicionalmente oscila entre dois registros. O primeiro é o da “história pragmática”, cujo propósito é mais normativo que descritivo. A fidelidade aos fatos, aqui, importa menos que uma narrativa de caráter moral, que chame a atenção dos vivos para a importância de determinados valores.

O segundo registro possível é aquele de uma “história compreensiva”, que revela as singularidades e complexidades do passado, sem imediato compromisso com o presente. No registro dessa história, ao contrário do anterior, não estamos reduzidos a optar de forma dicotômica sobre a positividade ou a negatividade de regimes políticos extintos —os mais remotos, pelo menos—, conforme nos filiemos à esquerda ou à direita.

No caso em questão aqui, a decidir se o Império foi o maravilhoso reinado de dom Pedro 2º, o magnânimo, ou o horror do latifúndio escravista. Por essa perspectiva de uma história compreensiva, portanto, é que gostaria de discutir certas premissas das narrativas historiográficas ideológicas brasileiras.

Como estudioso do século 19 e do começo do século 20, confesso meu espanto pela tendência de sempre examinar o Império e a República como se estivéssemos em um eterno plebiscito entre os dois regimes. No que diz respeito especificamente ao período monárquico, as incompreensões são tão numerosas quanto os elogios desnecessários.

Há uma série de fenômenos atribuídos à monarquia que, vistos de perto, nada tem a ver especificamente com essa forma de governo. O atual saudosismo conservador pelo Brasil Império é um deles.

Os conservadores americanos idealizam o período dos pais fundadores da República, ao passo que os argentinos e chilenos idealizam suas repúblicas oligárquicas da virada do século. Não houvesse monarquia aqui, os conservadores brasileiros idealizariam algum período republicano.

A referida tendência a opor o Império à República passa a ilusão de regimes estanques. Não faz sentido, porque não houve uma monarquia, mas várias: absoluta sob João 6º, representativa sob Pedro 1º, parlamentarista sob Pedro 2º. Monarquia que foi conservadora em sua primeira metade e progressista na segunda.

Esquecemos frequentemente que também houve várias repúblicas no Brasil: ditatoriais sob Deodoro/Floriano, o Estado Novo e o regime militar; oligárquica na República Velha; e democratizantes ou democráticas, como as de 1946 e 1988.

O regime de governo, em si mesmo, pelo simples fato de ter coroa ou faixa presidencial, não diz nada de específico sobre seu conteúdo. Arábia Saudita, Tailândia e Grã-Bretanha são monarquias. França, Paraguai e Síria são repúblicas. O que isso diz sobre questões como liberdade e igualdade? Nada.

A essência supostamente conservadora atribuída ao Império nesse plebiscito também é discutível. Houve liberais (Rui Barbosa e Joaquim Nabuco) e socialistas (Barata Ribeiro e Lima Barreto), para quem as últimas décadas do período monárquico foram mais progressistas que a Primeira República.

Por outro lado, vários republicanos conservadores (como Carlos Peixoto) e positivistas (como Carlos Maximiliano) recriminaram o Império por ter sido liberal demais, permissivo demais em matéria de liberdade de imprensa e de costumes políticos.

O maior dos reacionários brasileiros, Jackson de Figueiredo, era na década de 1920 um ultramontano republicano, condenando a defunta monarquia brasileira por seu excesso de liberalismo. Qual desses impérios foi o “verdadeiro”? Provavelmente os dois, o conservador e o liberal, que existiram em épocas diferentes. O único que não existiu foi o império reacionário, justamente este que, ironicamente, anda nos corações da direita radical.

Nesse plebiscito eterno, esquece-se frequentemente que, para os moderados ou centristas do século 19, as diferenças entre os dois regimes eram muito menores que hoje se imagina. O grande modelo político de civilização era a monarquia britânica e, por isso, eles viam monarquias constitucionais como espécies de repúblicas coroadas.

Na América hispânica, vários países se tornaram repúblicas por falta de opção, por não terem um príncipe à mão. Os mexicanos tentaram duas vezes o regime monárquico, e vários argentinos e chilenos também cogitaram a solução, não porque tivessem um fetiche por cetros e mantos, mas porque, no meio da guerra civil, achavam que um monarca teria mais condições de criar uma ordem nacional estável do que um presidente.

Modernas teorias do desenvolvimento ou mudança política destacam a dificuldade de proporcionar uma ordem poliárquica quando não há regras prévias sobre os limites do conflito entre competidores pelo poder, que só podem ser conferidas pelo sentimento prévio de pertencimento a uma mesma comunidade. Em outras palavras, o imperativo de integração precede aquele de participação e de redistribuição.

Como o crescimento econômico depende da estabilidade, o Brasil cresceu pouco durante a primeira metade do século 19. Empobrecida e destroçada pelas guerras civis, toda a região da América Latina cresceu pouco até 1860/1870, época em que os capitais estrangeiros começaram a fluir. Nada a ver, mais uma vez, com o regime de governo.

O primeiro meio século do Estado brasileiro, sob as vestes da monarquia, não é negativo quando considerado pela obra deixada em matéria de integração. Argentina, Colômbia e México, por exemplo, só conseguiram organizar seus Estados nacionais depois da década de 1870. Como república, só o Chile conseguiu estabilizar o Estado nacional tão cedo quanto o Brasil (1835-1840).

Todavia, confirmando a relatividade das formas de governo, os chilenos, para consegui-lo, organizaram uma república “monárquica”, com severas restrições à imprensa e à participação, ao passo que os brasileiros organizaram uma monarquia “republicana”, com uma liberdade que, apesar de muito inefetiva e restrita aos grupos dominantes, ainda era a menos cerceada do subcontinente. Para reconhecer esse aspecto positivo do regime monárquico, não é preciso ser monarquista. Pode-se, perfeitamente, ser republicano, como é o caso aqui.

Quanto à escravidão, sua associação à monarquia também não é simples. Sua extinção foi lenta e gradual em todas as sociedades onde estava arraigada. Na república dos EUA, a escravidão durou ainda quase um século depois da independência —só terminou abruptamente por conta de uma guerra civil (1865). Não fosse a guerra, teria durado muito mais.

Nas repúblicas hispânicas, em que a escravidão estava menos entranhada, a onda abolicionista só ocorreu na segunda metade do século: Equador (1851), Colômbia (1851), Argentina (1853), Venezuela (1854) e Peru (1855). Em nenhum país independente do continente a escravidão estava tão difundida como no Brasil.

Caso a monarquia não houvesse vingado por aqui, as diversas repúblicas surgidas em seu lugar teriam certamente preservado o regime escravista por mais tempo que todas as repúblicas vizinhas referidas, ao menos nas regiões brasileiras de maior dinamismo econômico, como o Sudeste. O que tornou insuportável o escravismo no mundo não foi a multiplicação de repúblicas, mas a associação definitiva entre democracia e civilização.

Ainda assim, os descendentes dos escravizados ainda teriam um longo caminho para terem reconhecidos e efetivados seus direitos. Com sua filosofia política embebida de darwinismo social, a Primeira República não se saiu melhor nessa matéria, nem as repúblicas posteriores.

Para concluir, tendo em vista a incontornável natureza ideológica da vida democrática, não é uma aberração que cada grupo político invente narrativas históricas, tendentes a legitimar sua visão de mundo, e que elas sejam contestadas por seus adversários. A invenção de versões e genealogias faz parte da luta política.

Sob esse aspecto, se deve compreender a fantasia reacionária da maior parte dos monarquistas atuais, com sua salada de referências díspares, que põe lado a lado Bonifácio, Nabuco, Mises, João Paulo 2º e Olavo de Carvalho. Para isso, contudo, é preciso resistir à tentação em sinal invertido: ter como verdadeira a associação reacionária com o Império.

O bicentenário da Independência vem aí, e seria uma pena desperdiçar a efeméride, limitando-se somente a relançar a gasta narrativa, à direita e à esquerda, que condena o Império a ser o pai do Estado Novo e o avô do regime militar. Ou, agora, o bisavô do governo Bolsonaro.

A história pode ser mais que um fútil exercício de política retrospectiva, no qual o estudioso retroprojeta as próprias preferências ideológicas sobre cadáveres e faz, de um cemitério, o campo de batalha de suas causas presentes.

Elite da administração pública atua em causa própria, Marcos Mendes, FSP

Uma das várias dimensões do nosso atraso é a forma como a elite da administração pública atua em causa própria.

Os auxílios, adicionais e “pagamentos de atrasados” brotam ao sabor da criatividade, gerando rendas muito acima do padrão de vida nacional.

O artigo 168 da Constituição, que instituiu a autonomia orçamentária dos Poderes, foi regulamentado de modo a garantir orçamentos sempre crescentes, nos três níveis de governo, para o Judiciário, Ministério Público, defensorias públicas, tribunais de contas e legislativos.

Luciano da Ros mostra dados de 2013 que situam nosso Judiciário entre os que mais gastam no mundo: US$ 130 por habitante, contra US$ 35 no Chile, US$ 19 na Argentina e US$ 16 na Colômbia.

Na advocacia privada, a parte perdedora em um processo paga “honorários de sucumbência” à vencedora, a título de ressarcimento. Tal verba remunera os advogados dos vencedores. A Lei 13.327/2016 estendeu a prática aos advogados públicos em causas da União.

Advogados do setor público já têm salário garantido e estabilidade no emprego, não têm custos de instalação e manutenção de escritórios e não precisam disputar clientes no mercado: são monopolistas da representação judicial da União. Não faz sentido que recebam essa verba. Segundo um site jurídico, em 2019 foram pagos R$ 550 milhões.

O Ministério Público da União se colocou contra esse pagamento. Em ação no STF, a ex-procuradora-geral Raquel Dodge afirmou que a prática ofende os “princípios da isonomia, impessoalidade, moralidade, razoabilidade e da supremacia do interesse público”.

Mas o próprio MPU não se furta a batalhar por seus vencimentos, buscando brechas para furar o seu teto e construir “jurisprudência” para sucessivas ampliações.

A emenda constitucional do teto de gastos fixou um limite específico para cada poder e órgão autônomo. Desde então, acabou a facilidade de aumentar os próprios salários e jogar a conta para outros pagarem: para dar aumento de salários, tem que cortar outras despesas do próprio órgão.

Em 2018, o MPU chegou a convencer o TCU a isentar do teto despesas financiadas por suas receitas próprias. A área técnica se pronunciou contra a interpretação criativa, mas o plenário do TCU determinou o aumento do orçamento do MPU. O Congresso se recusou a votar a autorização.

O MPU retornou ao TCU, com nova tese: alegou que seu teto de gastos havia sido calculado erroneamente em 2016, com a exclusão de R$ 105 milhões, referentes a seu auxílio-moradia. O TCU, dessa vez com maior fundamentação legal, determinou a elevação do teto do MPU. O Executivo acatou e fez o ajuste a partir de 2019.

O MPU passou a demandar “ressarcimento dos atrasados” de 2017 e 2018. Ou seja, transformou um teto de gastos —limite máximo— em direito de gastar.

O TCU, por sua vez, ignorou que orçamento é uma peça de vigência anual e garantiu o “direito” ao auxílio-moradia retroativo.

Os militares seguem a cartilha: usam o seu maior protagonismo no atual governo para obter previdência benevolente, gratificações e vantagens exclusivas. Já propuseram fixar o orçamento da defesa em 2% do PIB. Serão autônomos, como os demais Poderes.

A perda para o país vai além do custo financeiro das prebendas. Está no exemplo vindo de cima. Os excessos da elite reforçam o discurso dos populistas: se há para os grandes, tem que gastar com todos. O Estado vira um grande distribuidor de benefícios e salários. As finanças quebram e não sobra dinheiro para prover serviços públicos. A economia não cresce. A desigualdade aumenta.

É possível mudar: construir consenso político em torno das prioridades nacionais, ter pesos e contrapesos para frear o uso abusivo de poder. O ponto de partida é um claro limite do que pode ser gasto. Sem isso, sempre haverá espaço para oportunismo.​

Marcos Mendes

Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'