quinta-feira, 5 de outubro de 2023

35 anos de ambição democrática, Conrado Hubner Mendes -FSP

 Aniversários da Constituição de 1988 costumam ter, entre juristas, um certo tom triunfalista. Mesmo que reconheçam frustrações, balanços quinquenais raramente deixavam de enfatizar uma linha de progresso no desenvolvimento constitucional do país. Sua longevidade (a terceira maior da nossa história) seria fruto da virtude da resiliência e do compromisso com o Estado de Direito.

Essas convicções, se um dia fizeram sentido, estão abaladas neste 5 de outubro de 2023. O senso de retrocesso e de risco de ruptura cresceram na última década. Até entre juristas pollyanna, que olham para o mundo real e só enxergam avanços, o cenário já não está tão cor-de-rosa. Mesmo com a derrota de Bolsonaro e a interrupção momentânea do nonsense inumano e diário, suas práticas fincaram raízes na política.

O alarmismo chegou para temperar o triunfalismo. Isso sim, um avanço.

Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, apresenta a Constituição em 1988 - Lula Marques - 3.out.1988/Folhapress

Produto da Assembleia Constituinte mais democrática que já tivemos, apesar de um Congresso pouco representativo, o texto final foi impactado pela participação de movimentos sociais. Para o bem. Houve também concessões às corporações. Para o mal.

Nessa Constituição heterodoxa e sincrética, um acordo possível acima de partidos, havia mensagem de rechaço ao passado e olhar de mudança para o futuro.

A promessa de valorização da vida, da liberdade, da igualdade e da não discriminação não foi só retórica e simbólica. O texto previu motores para implementação de direitos. O SUS e o sistema de educação pública, subfinanciados, foram as maiores conquistas civilizatórias, ao lado da proteção ambiental, de comunidade indígenas e quilombolas.

Do ponto de vista socioeconômico, após um ciclo de redução da fome e da pobreza interrompido por crise econômica, o governo Bolsonaro, como prometido, travou políticas públicas e gerou números recordes de desigualdade e fome. E o PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira) segue crescendo. A sociedade que se pretendia "fraterna, pluralista e sem preconceitos" mata como nunca.

Os números de homicídios giram em torno de 50 mil por ano (quase 80% de pessoas negras). Como em nenhum outro lugar, a polícia continua a matar (quase 7.000 em 2022) e a morrer (161 policiais). Fomos vice-campeões em assassinatos de ambientalistas no ano passado. Em assassinatos de jornalistas, fomos melhores que Haiti, México e Ucrânia. Estamos entre os cinco que mais matam mais mulheres e crianças. Matamos pessoas trans como nenhum país.

A população carcerária cresceu 20% nos últimos cinco anos. É a terceira do mundo em números absolutos e a 14ª per capita. Prisões têm sido centros de treinamento gratuitos para o crime organizado, que expande seus membros no sistema político. O STF continua a manter ladrão de shampoo na prisão.

Queríamos remover o "entulho autoritário". Nesse período, que nossos parâmetros aprenderam a chamar de democrático, incrementamos e diversificamos um vasto estoque autoritário e de tolerância à delinquência política. Essa estrutura institucional e doutrinária viabilizou Jair Bolsonaro. Seus dispositivos continuam vigentes.

A Constituição de 1988 ainda busca mais operadores que lhe façam justiça. Afinal, não basta um bom texto, bons valores, boa arquitetura. O constitucionalismo precisa de autoridades que abracem a missão com apuro moral e jurídico. Nossas Casas parlamentares continuam a ser, em índices de exclusão, comparáveis a países fundamentalistas. Nossas cortes também.

Nos gabinetes do Congresso, articula-se aprovação de leis cujo teor o STF já declarou inconstitucionais. Nos gabinetes do poder econômico, articula-se a inviabilização de medidas elementares de redução de desigualdades. Nos gabinetes do crime organizado, luta-se pela corrosão do Estado, fim da Amazônia e perpetuação da guerra às drogas.

Na hermenêutica dos porões, ensinada nas casernas, o artigo 142 autoriza militares a aplicar golpe de Estado. E as Forças Armadas, que não admitem a busca da verdade sobre mortos e desaparecidos, vão vencendo mais uma. Nunca perderam.

Na cúpula do sistema de Justiça, alastram-se a descompostura e a legalidade alternativa. Como aquela que permitiu ao procurador-geral da República pedir a prisão desse crítico. Pois não suportou a ironia. O caso foi mandado ao arquivo. O poste continua permitido.

Ulysses contrariado, Bancada do Batom e licença-paternidade: os bastidores da Constituição- Por Daniel Weterman, OESP

 BRASÍLIA - O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, enfrentou um dilema sobre a participação do povo na Constituição. Em uma conversa reservada com integrantes da bancada feminina, a “Bancada do Batom”, ele se manifestou contrário ao projeto de colocar uma tribuna livre para cidadãos comuns se manifestarem sobre a Constituição e defenderem as emendas populares, conforme relatos de deputadas constituintes.

O deputado acreditava que a fala dos parlamentares, legítimos representantes dos eleitores, era suficiente para expressar os anseios da sociedade. “Se tiver uma tribuna livre, que papel nós exerceremos?”, questionou Ulysses. Nesse quesito, ele foi vencido.

Ao lado de parlamentares, Ulysses Guimarães segura a bandeira do Brasil na última sessão da Assembleia Constituinte, Brasília, em 1988.
Ao lado de parlamentares, Ulysses Guimarães segura a bandeira do Brasil na última sessão da Assembleia Constituinte, Brasília, em 1988. Foto: André Dusek/ Estadão

O resultado foi uma Constituição com 245 artigos originais, a mais extensa de todas as constituições brasileiras. O documento extrapolou para normas que não precisavam estar na Carta e poderiam ser resolvidas por lei ou decreto, de acordo com juristas. Até mesmo a manutenção do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, na órbita federal foi incluída. O resultado refletiu os anseios da época.

Muita coisa entrou mesmo sem consenso e ainda está só no papel. Atualmente, a Constituição Federal tem 162 dispositivos que nunca foram regulamentados, como o livre exercício dos cultos religiosos, a tributação de grandes fortunas e a obrigação de recuperação do meio ambiente degradado para quem explorar recursos minerais.

Política

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O Brasil é o país que mais alterou sua própria Constituição. “Será que esse trabalho não foi eficaz? Foi. Se temos alguma dificuldade, vamos ajudar a superá-las. A Carta está aí, então, não podemos desfazer aquilo que a Carta preconiza como ideal para o povo brasileiro”, afirma o ex-senador, Mauro Benevides, vice-presidente da Assembleia Nacional Constituinte e o “número 2″ de Ulysses no processo.

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Ex-senador Mauro Benevides, vice-presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1989.
Ex-senador Mauro Benevides, vice-presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1989. Foto: Wilton Junior/Estadão

A tribuna livre se tornou um espaço icônico no processo. Uma das cenas mais marcantes foi quando o líder indígena Ailton Krenak defendeu a inclusão dos direitos dos indígenas na Constituição Cidadã e protestou contra medidas que restringiam a garantia da terra para os povos originários. Vestindo terno branco e gravata, ele fez um discurso pintando o próprio rosto e as mãos com tinta preta à base de jenipapo, em sinal de protesto e luto, em frente aos parlamentares.

“Aquelas palavras desceram na minha cabeça como se eu tivesse tendo uma revelação dos ancestrais me instruindo e me dando autoridade para falar”, conta Krenak ao Estadão. Ele ressalta que de lá para cá a população indígena “ficou em pé” e enfrentou a agressão, sobrevivendo a um “genocídio” e a tentativas de retrocesso, como no caso dos atos golpistas do 8 de janeiro e do marco temporal.

Krenak é favorito para ser o primeiro indígena a assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). A eleição ocorre nesta quinta-feira, 5, justamente no dia da promulgação da Constituição. “A Constituição tem essa natureza intrínseca de ser blindada, não é alguém que vai blindá-la.”

A Constituição tem essa natureza intrínseca de ser blindada, não é alguém que vai blindá-la.

Ailton Krenak, líder indígena

Outro discurso que mudou os rumos da Constituinte foi a defesa da licença-paternidade, direito garantido aos pais - além das mães - se afastarem do trabalho para acompanhar os filhos nos primeiros dias de vida. A proposta, apresentada pelo então deputado Alceni Guerra, foi alvo de chacota do próprio Ulysses no plenário. “É uma homenagem ao homem gestante”, disse o presidente.

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Em seguida, Alceni Guerra pediu a palavra. Ele relatou casos que vivenciou como pediatra, incluindo o de um pai demitido após acompanhar a mulher que faleceu logo após o parto. O deputado também falou de sua própria história. Ele acompanhou sua filha quando nasceu e a esposa, que esteve à beira da morte após dar a luz. “Não havia nenhuma Assembleia Nacional Constituinte, nenhum emprego, nenhum patrão, nada, nenhuma força do mundo, que me tirasse do lado dela e dos meus filhos.”

Recebo com humildade a chacota e as gargalhadas, mas quero que os senhores saibam que é uma emenda séria de quem viveu durante toda a sua vida esse problema

Alceni Guerra, deputado constituinte, durante defesa da licença-paternidade

O plenário saiu dos risos de chacota para o silêncio. “Recebo com humildade a chacota e as gargalhadas, mas quero que os senhores saibam que é uma emenda séria de quem viveu durante toda a sua vida esse problema”, finalizou Guerra. Depois da fala, aplausos e um pedido de perdão de Ulysses. Ficou ali sacramentado o direito à licença-paternidade.

A Constituição e os ressentimentos dos Poderes, MEIO

 Por Christian Lynch

Nesta quinta-feira, a Constituição de 1988 urdida por Ulysses Guimarães soprará 35 velinhas. Trata-se de um feito, já que apenas duas constituições na história brasileira foram mais longevas: a do Império, que durou 65 anos; e a da Primeira República, que resistiu a 39. Todas as outras duraram menos: a de 1934, 3 anos; e a de 1946, 21 (as constituições autoritárias de 1937 e 1967 não contam). Tudo pesado, creio não ser excesso declarar que a Constituição de 1988 seja a definitiva do Brasil. Definitiva à maneira do verso de Vinicius: enquanto a democracia durar...

Houve quem lhe agourasse vida curta, devido à forma como foi feita, de baixo para cima, sem um anteprojeto; à sua desmesurada extensão, com 245 artigos; ao seu conteúdo demasiado minucioso sobre diversas esferas da vida; à sua ideologia progressista. Mas tais críticos esquecem que a Constituição teve um anteprojeto oficioso, elaborado pela Comissão Afonso Arinos; que a prolixidade é característica de todas as constituições modernas, como a portuguesa (que tem 296 artigos — 50 a mais que a nossa); que seu conteúdo minucioso nunca foi obstáculo à possibilidade de ser emendado (já foram 128 emendas).

Quanto ao seu caráter progressista, a Constituição revelou a capacidade de comportar governos de diferentes orientações ideológicas. Desde o conservadorismo liberal de Sarney e Temer, até a social-democracia de Lula e Dilma, passando pelo liberalismo democrático de Fernando Henrique. Ela resistiu aos trancos e barrancos à crise de representação política de 2015-2018 e, depois, ao governo de Jair Bolsonaro, que como vilão de filme B ressuscitou o autoritarismo contra o qual os constituintes a haviam planejado. Apesar das tentativas de subversão, a filhota de Arinos e Ulysses resistiu.

Não se trata somente de garantir a sobrevivência do texto da Constituição. Às vezes sua letra sobrevive, mas seu espírito é aniquilado. Foi o que aconteceu com a Carta de 1946, cujo texto sobreviveu por três anos ao golpe de 1964 de forma somente vegetativa.

O espírito da Constituição reside no conjunto de seus valores, distribuídos por seus princípios e normas, que são expressivos e garantidores do Estado de Direito democrático.

O elemento novo introduzido em 1988 que permitiu a sobrevivência da progressista Constituição foi a instituição pelos constituintes de um Judiciário fortalecido, encimado por um Supremo Tribunal encarregado de zelar pelo primado de seus princípios e regras. Foi principalmente pela atuação do STF na interpretação da Constituição conforme os parâmetros hermenêuticos de democracias mais avançadas que o Estado de Direito democrático nele previsto se tornou realidade. A coalizão de reacionários e neoliberais no poder com Bolsonaro golpeou a Constituição dia sim e outro também para colocar abaixo a democracia, no propósito deliberado de repetir nas condições atuais o precedente exitoso de destruição democrática de 1968. Foram os juízes do STF que encabeçaram depois a resistência à tentativa de subvertê-lo e, hoje, estruturam a repressão ao golpismo. Ao se tornar um obstáculo intransponível à sua agenda autoritária, seus juízes se tornaram os inimigos favoritos de dez em cada dez reacionários e neoliberais (estes, seus inimigos de sempre).

Hoje, o principal problema político do STF como guardião da Constituição reside no fato de ser visto como elemento impeditivo ou desestabilizador dos arranjos de governabilidade disputados pelo Executivo e pelo Legislativo. O presidencialismo de coalizão articulado por Fernando Henrique estabilizou a política republicana como forma de articulação entre os Poderes. A crise do consenso progressista e a degeneração daquele arranjo pela corrupção nos governos subsequentes, seguida pela erupção do judiciarismo disruptivo da Lava Jato, foi responsável pela crise política e constitucional da década passada, que culminou na catástrofe bolsonarista.

Bolsonaro passou, mas não surgiu ainda um novo modelo de governabilidade capaz de restabelecer uma rotina de equilíbrio entre os Poderes.

O atual Executivo se ressente do estado de sujeição a que ficou submetido ao Congresso desde 2015, quando Eduardo Cunha começou a sabotar o governo Dilma. Mas se ressente também do Judiciário, que deu livre curso e sanção ao lavajatismo na mesma época. Já o Legislativo, fortalecido e muito mais conservador, resiste às tentativas do Executivo de relançar o velho presidencialismo de coalizão, na qual os parlamentares figuravam como coadjuvantes. As maiorias da Câmara e do Senado sonham, ao contrário, com a continuação do parlamentarismo bastardo instituído nos últimos anos.

Executivo e Legislativo, por suas vezes, se ressentem da ascendente do Judiciário. Bolsonaro queria resolver o problema liquidando e aparelhando aquele poder. Já Lula se contenta em escolher ministros e procurador-geral da república de sua estrita confiança, para evitar a reiteração do lavajatismo. A frustração dos movimentos sociais identitários com a não nomeação de uma mulher negra parece um custo relativamente barato no primeiro de mandato. Já o Legislativo quer neutralizar o Judiciário, para obrigá-lo a abandonar a interpretação progressista da Constituição.

Do ponto de vista político, todo o problema constitucional hoje reside na incapacidade de estabelecer um novo modelo de governabilidade. Cada um dos três Poderes se orienta pela aspiração de dominar os demais, ou pelo menos de não se sujeitar à hegemonia de nenhum deles. Enquanto o novo consenso em torno do funcionamento dos Poderes não emergir, a república seguirá em sistema de equilíbrio instável pelo entrechoque dos três. A relativa paralisia daí resultante, gerando efeitos conservadores do status quo, será o preço a pagar pelos ressentimentos recíprocos da década passada, agravados pelo crescente dissenso ideológico.

Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ