segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

O lava-jatismo contamina a eleição, Elio Gaspari, FSP

 Márcio França, que governou São Paulo em 2018 e é candidato ao cargo, foi a última vítima do lava-jatismo, a variante espetaculosa e instrumental das iniciativas que combatem a corrupção na administração pública.

A Polícia Civil de São Paulo, autorizada pela Justiça, cumpriu mandados de busca e apreensão em 34 endereços de pelo menos seis cidades do estado. Alguns deles estavam "ligados" a França. O que significa "ligado" não se sabe.

A investigação, que corre em segredo de Justiça, seguiu a regra básica do lava-jatismo, com vazamentos dosados e temperados com uma cifra: os acusados estavam metidos em operações que lesaram a Viúva em cerca de R$ 500 milhões, numa estimativa de dezembro, feita pela Corregedoria Geral da Administração. (Isso tudo nos dias em que se lembrou o primeiro aniversário da invasão do Capitólio, em Washington. De lá para cá, o Federal Bureau of Investigation prendeu centenas de pessoas sem espetáculo algum.)

A blitz foi um prolongamento da Operação Raio-X, iniciada em 2020. Ela investiga roubalheiras de organizações sociais metidas na rede de saúde, com suas conexões políticas.

Serviço bem-feito, ela operou sem espetáculos, cumpriu 327 mandados de busca, prendeu 64 pessoas, levou o Ministério Público a denunciar mais de 70 e permitiu a condenação de pelo menos 15 pessoas, uma delas a 104 anos de prisão. Tudo isso sem espetáculo, monitorando os investigados que destruíam documentos.

Até os esparadrapos dos hospitais sabem como funcionam, em vários estados, algumas dessas organizações sociais, às vezes com nomes de santos. No Rio, o ex-governador Wilson Witzel levantou o tema, mas teve pouca atenção.

O lava-jatismo poluiu a Operação Raio-X valendo-se de uma velha receita. Pega-se uma roubalheira documentada, cria-se o enredo da busca e apreensão, divulga-se uma cifra, e nesse guisado entra o nome de um político.

No caso, entrou na roda Márcio França. Como governador, dias antes de deixar o cargo, ele aliviou o acusado que mais tarde veio a receber a condenação centenária. Para a polícia, surgiram "indícios veementes de um forte vínculo entre os dois".

Em dezembro a polícia apresentou à Justiça um documento reservado de 212 páginas pedindo os mandados de busca. França é o principal personagem em mais de 50 dessas páginas. Cabe à Justiça decidir o valor dessas acusações. Fora daí, é lava-jatismo.

Desde abril do ano passado o Ministério Público paulista investiga, sem teatro, um irmão do governador. Ele tem empresas na rede de prestação de serviços de saúde e foi grampeado em diálogos impróprios, "estarrecedores", na palavra da polícia. Esse foi o jogo jogado de uma operação bem-sucedida.

lava-jatismo é a doença senil do combate à corrupção e contaminou as atividades da República de Curitiba. Ela conseguiu 174 condenações, detonou o maior esquema de corrupção já descoberto na República. Foi manchada pela instrumentalização política e pela espetacularização de suas atividades.

Graças às investigações da Operação Raio-X, na primeira quinzena de dezembro a Justiça de Penápolis (SP) condenou 12 pessoas, entre elas o ex-secretário de Saúde do município a 21 anos de cadeia.

Serviço bem-feito não precisa de coreografia. Num ano de eleições será forte a tentação para instrumentalizar ações policiais. Elas acabam viciando a boa causa.

FRANÇA COM O CAJADO

Em 2018, quando governava São Paulo, o doutor Márcio França ensinou:

"As pessoas têm que entender que a farda deles [PMs] é sagrada, é a extensão da bandeira do estado de São Paulo. Se você ofender a farda, ofender a integralidade do policial, você está correndo risco de vida. É assim que tem que ser".

Passado o tempo, encrencado com a Polícia Civil, França talvez tenha percebido que, com o cajado na mão, exagerou ao falar em "risco de vida".

JOHNSON SABIA TUDO

Lyndon Johnson, presidente dos Estados Unidos de 1963 a 1969, foi um dos políticos mais espertos de seu tempo. Aqui vai uma de suas histórias preferidas:

Numa pequena cidade do Texas, o candidato a prefeito procura um amigo, diretor do jornal, e, às vésperas da eleição, pede-lhe que publique a notícia de que seu rival foi visto mantendo relações sexuais com um animal.

Ele vai desmentir, diz o dono do jornal.

É exatamente isso que eu quero, responde o candidato.

Hélio Schwartsman Homens e instituições, FSP

 

Um país se faz com homens e instituições. Os primeiros sem as segundas são impotentes; as segundas sem os primeiros, idem. Prova-o a nota pública que o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, assinou cobrando uma retratação do presidente Jair Bolsonaro por ter feito insinuações contra a agência.

Barra Torres, de óculos, retira a máscara e olha diretamente para a câmera
Antonio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, na CPI da Covid no Senado - Adriano Machado - 11.mai.21/Reuters

Torres só pôde tomar essa atitude e continuar no cargo porque a Anvisa está legalmente blindada de interferências políticas. Seus diretores têm mandato fixo e só podem ser mandados embora antes do prazo se cometerem falta grave. Já tivemos casos de diretores de órgãos que peitaram Bolsonaro e suas sandices, mas perderam o posto. O mais notório talvez tenha sido o do físico Ricardo Galvão, que comandava o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), e rebateu acusações infundadas do presidente sobre os dados de desmatamento da Amazônia aferidos pelo órgão em 2019.

PUBLICIDADE

A desavença pública até fez bem à biografia de Galvão, que ganhou reconhecimento internacional pela defesa da ciência, mas privou o Inpe, cujos diretores não estão protegidos da demissão "ad nutum", de um grande quadro. Ou seja, contar com homens bons é condição necessária, mas não suficiente, para o adequado funcionamento da máquina pública. E ter a blindagem legal, mas não as pessoas certas, também não funciona. Há, na estrutura do governo federal, um bom número de posições que em tese dão autonomia de decisão a seus detentores, mas não vemos tanta gente se rebelando contra orientações do presidente, mesmo quando elas são absurdas. Nenhum governo jamais acabou por falta de bajuladores.

Não há muito o que possamos fazer para melhorar as pessoas, mas as instituições nós podemos aprimorar. Eu começaria estendendo a blindagem típica das agências reguladoras para outros órgãos técnicos, como o Inpe e o IBGE. O governo Bolsonaro é um argumento forte em favor da limitação dos poderes presidenciais.