domingo, 5 de dezembro de 2021

Moro vive em mundo encantado onde todos são culpados, menos ele, Elio Gaspari, FSP

 Sergio Moro está em campanha e tomou uma rara iniciativa: publicou um livro escrito por ele, explicando-se e apresentando-se.

O epílogo diz tudo. Seu título é "Precisamos de você", e a última frase é um pedido de ajuda: "A luta contra o sistema de corrupção nunca poderá prescindir de bons combatentes, entre eles você".

Moro fala muito bem de si. Saem mal de seu livro o Supremo (quando o declara parcial), o Congresso (quando altera suas propostas) e Jair Bolsonaro (quando fritou-o).

O ex-juiz Sergio Moro, em seu evento de filiação ao Podemos - Pedro Ladeira = 25.nov.2021/Folhapress

A Sergio Moro ele concede um mecanismo que condena, a "presunção de inocência à brasileira": Ela "é apenas uma construção interpretativa que visa garantir a impunidade de crimes cometidos pela classe dirigente". Todo mundo é culpado de tudo, menos Sergio Moro.

Ele justifica suas sentenças e defende com argumentos que parecem insuficientes o fato de ter patrocinado a exposição da interceptação telefônica de uma conversa de Lula com a então presidente Dilma Rousseff quando o prazo legal da escuta já tinha caducado.

Não foi ele quem autorizou a publicidade. Vá lá, mas quem foi?

O juiz que simbolizou a Lava Jato com seus méritos históricos conclui que a operação "foi vítima de suas virtudes, e não de seus erros".

Moro trata do episódio que pode ter sido o maior erro do campeão da Lava Jato: sua ida para o ministério de Jair Bolsonaro.

Referindo-se à retórica de Bolsonaro durante a campanha de 2018, quando era um magistrado, ele diz:

"Não imaginei, nem por um minuto, que aquelas declarações, muitas delas completamente absurdas, reverberassem em políticas públicas concretas. Havia uma distância entre discurso e gesto que me dava algum conforto."

Tudo bem, mas como Bolsonaro não mudou, o juiz que aceitou, entre o primeiro e o segundo turno, o gesto do convite para o ministério, acreditava que o capitão estava enganando a plateia. O tempo mostrou que o juiz enganou-se achando que enganava-se o eleitorado.

Relembrando o aparecimento do rolo das "rachadinhas", na primeira semana de dezembro de 2018, Moro diz: "Àquela altura eu já havia deixado a magistratura e estava na equipe de transição do governo. Não havia como voltar atrás." Haver, havia, ficou porque quis.

Moro menciona em seu livro mais filmes e séries de TV (oito) do que marcos da jurisprudência. Em nenhum deles o herói se deixou fritar.

Tendo entrado no governo de um presidente que dizia absurdos durante a campanha, perdeu a confiança nele quando começaram a trabalhar juntos: "Eu não poderia confiar nele", ou "não havia como confiar mais no presidente".

Moro registra que Bolsonaro também mostrava não confiar no seu ministro da Justiça. Essa desconfiança seria maligna, enquanto a de Moro em Bolsonaro, benigna. Jogo jogado, afinal, o livro é dele.

Lê-lo pode ser um pouco agreste, mas ajudará a acompanhá-lo na campanha do ano que vem.

Ele não conta tudo, mas solta insinuações e avisa: "Quem sabe algum dia eu escreva um relato mais abrangente e detalhado, abordando fatos sobre os quais fica muito difícil me posicionar no momento".

Tomara que isso aconteça logo. Falta contar com fatos, porque Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal.

BOLSONARO É CAMPEÃO

Jair Bolsonaro conseguiu mais um feito inédito. Em três anos de governo, dois de seus ministros puseram na rua livros denunciando sua conduta.

Primeiro veio Luiz Henrique Mandetta com seu "Um Paciente Chamado Brasil". Nele, o ex-ministro da Saúde denunciou o negativismo obsessivo do presidente diante de uma epidemia que já matou mais de 600 mil brasileiros.

Em seguida, veio Moro, a maior estrela de seu ministério nos dias da posse, mostrando que seu compromisso com o combate à corrupção era parolagem.

A favor, nenhum. Só os delírios românticos de Paulo Guedes.

A FORÇA DO GOVERNISMO

É compreensível que a oposição torça por derrotas da bancada de Bolsonaro, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, mas torcer é uma coisa e difundir falsas expectativas é outra.

Nas últimas semanas, aprovando emendas constitucionais e a indicação de André Mendonça para o Supremo Tribunal, o governo mostrou sua musculatura parlamentar.

A cada expectativa frustrada correspondeu a reclamação de que aconteceram traições. Pena, tudo teria ficado mais claro se torcida fosse chamada de torcida.

Candidatura de Moro completa a brasilidade do absurdo, Janio de Freitas, FSP

 A anulação de 13 condenações aplicadas por Sergio Moro, entre as quais as de Antonio Palocci e Marcelo Odebrecht, situa-se entre duas explicações possíveis.

Ou Moro ignorava que irregularidades de cunho eleitoral competem à específica Justiça Eleitoral ou suas sentenças nos 13 processos confirmam má-fé e parcialidade na apropriação desses casos.

A anulação e suas razões pulverizam todos os questionamentos e ressalvas, sobretudo as do próprio Moro, à recente imputação de julgamentos parciais e suspeitos que lhe fez o Supremo Tribunal Federal (na 2ª Turma e em confirmação pelo pleno).

O ex-ministro Sergio Moro, em evento de sua filiação ao Podemos
O ex-ministro Sergio Moro, em evento de sua filiação ao Podemos - Pedro Ladeira/Folhapress

Todos os atos desses processos na Lava Jato foram anulados no Superior Tribunal de Justiça. Caberá à Justiça Eleitoral decidir se os recupera, se inicia novos procedimentos ou não.

Em qualquer decisão, sem o principal acusável, que é o autor da absurda ilegalidade judicial, aliás preservada pelo Tribunal Regional Federal-Sul em decisões não menos parciais e suspeitas.

Mas nem assim a brasilidade do absurdo se completa. O que só se dá, por ora, com a candidatura de tal acusável a presidente do país ao qual ludibriou.

Autor de escutas ilegais de advogados de defesa, de parentes de acusados, até da presidente da República —entre incontáveis ilegalidades—, Sergio Moro tem um bordão de uso diário: "Não cometi nenhum ato ilegal".

Vê-se que deseja competir com Bolsonaro também em outros campos, valendo-se, inclusive, de um auxiliar distante da sua intimidade: considerada a forma física, um livro.

Com o bordão aí espichado em afirmações assim: a respeito de Lula, "jamais se atuou com parcialidade com ele". Com ele, não mesmo. Contra ele, sempre.

No Judiciário, Moro se esvai como suas verdades. E nem faz diferença que Bolsonaro aumente de 10%, como disse, para 18% sua intromissão no Supremo.

Primeiro, porque ainda haverá nove magistrados, apesar de nem todos o serem sempre. Depois, pela chegada ao tribunal, não de um deslocado pastor, mas só de um caco.

É o que resta de André Mendonça depois da quase unânime comparação entre suas afirmações aos senadores, para ver-se aprovado ao Supremo, e os atos e palavras do seu passado conhecido. O Senado talvez nunca tenha visto alguém contradizer-se tanto e com tanta desfaçatez.

O auge da autenticidade de André Mendonça viria, porém, na sua comemoração com Bolsonaro, já antiética por si só. Fotografada e distribuída à imprensa pela própria Presidência, mas muito pouco reproduzida para leitores e espectadores.

Bocas escancaradas em riso de cafajeste, caras debochadas, enlaçados em mais do que um abraço, parecem dois bêbados desequilibrados e se amparando mutuamente, para diversão dos circunstantes.

O Supremo passou por muitas vergonhas, mas nunca viu, com certeza nunca viu, tamanha falta de compostura em nome da sua toga.

Humilhação e prenúncio que o Senado de Rodrigo Pacheco lançou ao Supremo, como presente natalino a Bolsonaro e aos antidemocratas.

Tudo muito próprio, no entanto, para um país em que mais de 50 milhões pessoas estavam abaixo da linha de pobreza no ano passado e no atual só veem aumentar sua desgraça e sua fome.

Um a cada quatro brasileiros na população em 2020, por verificação do IBGE, e a caminho de um a cada três em 2022 já preparado pela recessão afinal denunciada.

E pelo apoio, já definido, do poder econômico e dos seus meios de interferência eleitoral a um sucedâneo de Bolsonaro, pelo mesmo primarismo obtuso, pela mesma arrogância perigosa e pela também reconhecida, até por seus pares, falta de escrúpulo.

Ficará bem, suponho, interromper aqui com a citação de uma frase banal e recente de Aécio Neves: "Eu não faço política com o fígado". É com o bolso.