domingo, 10 de janeiro de 2016

Por Matheus Pichonelli- A empregada anda de avião..., do GGN


O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano que passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar qualquer questão que não seja a temperatura e você entende o que moveu todas as guerras de todas as sociedades em todos os períodos históricos. Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio será a prova de que a humanidade não deu certo.
Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente ‘revoltada’ porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários”.
A cena parecia saída do filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, no qual a demissão de um veterano porteiro é discutida em uma espécie de “paredão” organizado pelos condôminos. No caso do prédio do meu amigo, a moça havia se transformado na peça central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por apartamento.
Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos uma indigência humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta.
Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que lhe chamava a atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas fazem festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo da caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado muitas vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual de passagem, da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios aos filhos campeões, há uma mensagem quase cifrada: “você conseguiu: venceu a corrida principal, o funil social chamado vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém. Pode morrer em paz”.
Não importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor é picareta. Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas linhas de texto para passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.
O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente a pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive se for preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma bagagem que entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente intelectual, insensível socialmente, sem uma visão minimamente crítica ou sofisticada sobre a sua realidade e seus conflitos. É por isso que existe tanto babeta com ensino superior e especialização. Tanto médico que não sabe operar. Tanto advogado que não sabe escrever. Tanto psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que não lê jornal.
Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade sobre o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino superior no Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo de distinção.
Por isso comemora-se também ao sair da faculdade. Já vi, por exemplo, coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida em dia de jogo: “vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida. Fazem parte de uma parcela minoritária e privilegiada da população”; em tempo: a formatura era de um curso de odontologia, e ninguém ali sequer levantou a possibilidade de que a batalha só seria vencida quando deixássemos de ser um país em que ter dente era (e é), por si, um privilégio.
Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou trocar a fralda e dar banho em nossos filhos: aproveitamos até a última ponta o gosto de dizer “estou te pagando e enquanto estou pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a atenção do garçom com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi batata-fria e ele me entregou mandioca? Ao lembrá-lo de que é ele quem serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições.
Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se incomodam quando a lavadeira, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” espaços antes cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os aeroportos.
Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa falência do que o episódio da professora que postou fotos de um “popular” no saguão do aeroporto e lançou no Facebook: “Viramos uma rodoviária? Cadê o glamour?”. (Sim, porque voar, no Brasil, também é, ou era, mais do que o ato de se deslocar ao ar de um local a outro: é lembrar os que rastejam por rodovias quem pode e quem não pode pagar para andar de avião).
Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos da elite (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Não é por vontade - CARLOS ALBERTO SARDENBERG


O GLOBO - 07/01

Chineses não estão parando porque querem. É porque não conseguem mais crescer antes de eliminar as distorções



A China é a grande preocupação na economia mundial. O país vem desacelerando forte desde 2012, quando a expansão de seu Produto Interno Bruto caiu de uma média superior a 9% ao ano para a casa dos 7%. Do ano passado em diante, o governo está tentando salvar uns 6%, mas fica cada vez mais difícil.

Questão: terá o Partido Comunista tomado a decisão de não crescer mais? E por que faria isso?

Não faz sentido. Nenhum governo, nenhuma sociedade, democrática ou autoritária, gosta de recessão. No capitalismo, que já é o regime dominante na China, todos querem o crescimento mais acelerado possível, já que é mais fácil ter empregos e ganhar dinheiro nesse ambiente.

Só a pobre esquerda brasileira acha que os neoliberais e os barões do capitalismo preferem a recessão para faturar mais. Se fosse assim, os bancos e as empresas capitalistas seriam um poço de pobreza.

Se é tão óbvio assim, por que estamos falando disso? Porque parece não ser óbvio por aqui. No PT e satélites, nas centrais sindicais, nos movimentos sociais e em boa parte da academia, aconteceu o seguinte: a presidente Dilma, pressionada pelo “sistema”, abandonou a política de crescimento e passou para a recessiva. Agora, vai voltar ao caminho do crescimento.

Pois deveriam explicar aos chineses como se faz isso: basta ter vontade de crescer e, pronto, faça-se o PIB.

Os chineses não estão parando porque querem. É porque não conseguem mais crescer antes de eliminar as distorções geradas pela expansão acelerada das últimas décadas.

Quais distorções?

Reparem nesta: o governo chinês prometeu conceder uma espécie de cidadania urbana provisória para nada menos que cem milhões de trabalhadores neste ano. Parece estranho, e é mesmo.

Na China, você não pode morar onde quiser. Quer dizer, poder, pode, mas se o trabalhador se instalar em uma cidade sem autorização do governo — sem registro na prefeitura — não terá direito aos serviços públicos geralmente subsidiados. Fica mais ou menos clandestino. Mora em algum lugar, pagando aluguel caro, e trabalha numa fábrica, por exemplo, mas ganhando menos.

Há nada menos que 255 milhões de trabalhadores nessas condições — são pessoas que migraram do campo para as cidades, em busca de oportunidades.

O objetivo dessa restrição histórica — o registro de residência — é social (controlar as migrações), econômico (controlar a distribuição de mão de obra) e político (controlar a vida das pessoas).

Não funcionou — ou não funciona mais. O pessoal do Partido Comunista, certamente, esperava que, sem registro, os trabalhadores ficariam no campo. A realidade do mercado capitalista instalado no país desde o final dos anos 80 determinou o contrário: os camponeses migraram para onde estava o emprego.

Resultado: um poderoso exército de mão de obra barata, que serviu para a expansão inicial; mas, hoje, são 255 milhões na terceira classe de uma sociedade que ganhou renda.

O PIB chinês cresceu mais de dez vezes desde a derrubada do maoísmo e a introdução da economia de mercado. Formou-se uma classe média e uma classe trabalhadora de primeira, além de uma geração de empreendedores e empresários. Toda essa gente quer mais. Mais salários — que já estão subindo —, mais habitação, cidades melhores, saúde, educação, previdência. E mais liberdade.

Nesse ambiente, a existência de 255 milhões de clandestinos gera enorme pressão social e política. Daí a decisão do governo de conceder a esses trabalhadores o acesso ao registro residencial. No estilo chinês, paulatinamente, começando com apenas 100 milhões.

Ora, isso vai ficar caro para o governo — que terá de fornecer serviços subsidiados para mais gente — e para as empresas, que pagarão salários mais altos e mais benefícios a trabalhadores legalizados.

Com custos mais altos para resolver essa e outras (muitas) distorções, a economia chinesa terá menos investimentos e, pois, menos crescimento. Não por vontade, mas por necessidade.

Aqui no Brasil, a situação é muito diferente. Não estamos crescendo menos, estamos em recessão. Essa recessão, porém, não era inevitável no primeiro momento. Decorre de sucessivos equívocos da política econômica dilmista, baseada na crença de que para crescer basta querer. Basta o governo querer gastar, conceder crédito e endividar-se — e tudo se resolve.

Isso gerou um baita rombo nas contas públicas, além de inflação. Aí, sim, a recessão tornou-se inevitável. Não foi consequência da política de ajuste fiscal, mas da falta de ajuste prévio. O problema agora é como administrar a saída da recessão, o que exige restabelecer o equilíbrio das contas públicas.

Vontade de crescer, todo mundo tem. Como fazê-lo? — eis o que distingue as sociedades mais ou menos sábias.

Carlos Alberto Sardenberg é jornalista

Uma aula da fantasia oligárquica - ELIO GASPARI


FOLHA DE SP - 06/01

Num ridículo episódio de caipirice cosmopolita, ao passear no teleférico do morro do Alemão, Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, disse que estava se sentido "numa estação de esqui" dos Alpes. A doutora achou que viajara ao futuro, mas estivera a bordo das maquinações do passado e das empulhações do presente. Em breve o teleférico será operado pela empresa de Tiago Cedraz, filho do presidente do Tribunal de Contas da União, o veterinário e ex-deputado Aroldo Cedraz.

A obra custou R$ 253 milhões e foi inaugurada duas vezes (em 2010 e 2011) sem que o serviço estivesse em plena operação. Funcionando, ele reduz para 19 minutos uma caminhada que pode durar até duas horas. Quando madame Lagarde esteve nos Alpes cariocas, o governo do Rio já começara a atrasar os repasses para a manutenção do serviço e a concessionária se desinteressara pela renovação do contrato, dispensando alguns funcionários. O colapso financeiro do Rio já havia começado.

No mundo da fantasia, dera tudo certo no andar de cima. As empreiteiras Odebrecht, OAS e Delta orgulhavam-se da obra. A Delta foi apanhada nas traficâncias do bicheiro Carlinhos Cachoeira e foi declarada inidônea pela Controladoria-Geral da União. A OAS, apanhada na Lava Jato, está em recuperação judicial. A empresa Supervia, filhote da Odebrecht, ficou com a exploração do serviço.

À época, Lula, Dilma, Sérgio Cabral e Pezão saciaram-se na publicidade. Sobrou um teleférico para ser operado. Essa, a parte que exige trabalho e não rende propaganda, tomou outro curso, o dos serviços públicos para o andar de baixo. Às vezes o teleférico funcionava num horário proibitivo para quem precisava pegar no batente de manhã cedo.

A Supervia desistiu da operação e devolveu a maravilha à Viúva. O repórter Ítalo Nogueira revelou que o governo do Rio concluiu a licitação para escolher a nova operadora do teleférico do Alemão. Venceu-a uma empresa do advogado Tiago Cedraz, criada em abril passado. Sem licitação, a prefeitura do Rio já entregara a Cedraz a operação de outro teleférico, menor, no morro da Providência.

Ricardo Pessoa, um dos empreiteiros presos pela Lava Jato, contou ao Ministério Público que deu R$ 1 milhão a Tiago para ajudar na liberação de um contrato de R$ 2 bilhões para obras da usina nuclear de Angra 3. Pessoa pagava também R$ 50 mil mensais ao escritório do advogado para cuidar de seus pleitos. Ele confirma ter trabalhado para a UTC, mas nega ter tocado em propinas.

Tiago Cedraz tem 33 anos e diplomou-se em 2006. Entre 2009 e 2013, formou um patrimônio imobiliário avaliado em R$ 13 milhões, mais um jatinho Cessna de dez lugares. Teve um conversível vermelho, mas seu pai fez com que o devolvesse.
Vive em Brasília e seu escritório acompanha 35 mil processos. Em 182 atuou no Tribunal de Contas. Em julho, a Polícia Federal visitou-o, cumprindo um mandado de busca e apreensão. Cedraz informa que criou a empresa Providência Teleféricos "quando surgiu a oportunidade de participar das concorrências".

Quando madame Lagarde for esquiar nos Alpes, poderá perguntar se há por lá algum teleférico que tenha passado por tantas peripécias, com personagens tão pitorescos.