BRAVA GENTE BRASILEIRA
por Miguel Nicolelis in revista Brasileiros - dez/10
Em tempos normais, eu já não aconselharia ninguém vindo do Brasil a pousar no Aeroporto Internacional Dulles, de Washington, capital dos Estados Unidos, antes das 6 horas da manhã. Na quarta-feira chuvosa de 3 de novembro de 2010, nem pensar. Nas circunstâncias daquela madrugada, entrar em contato com a atual realidade do combalido império do norte sem a preparação adequada, tinha tudo para ser uma experiência traumatizante, capaz de causar nos menos avisados um estado de completa estupefação. Nesse momento, cabe um parêntese. Enquanto os viajantes brasileiros tinham deixado há poucas horas um país tropical ensolarado e radiante, comemorando o resultado alvissareiro de um dos maiores exercícios democráticos da sua história, os seus anfitriões matutinos acabavam de acordar para a dura realidade de um outro pleito. Depois da luta fratricida travada nas trincheiras da desinformação, ignorância e preconceito, os americanos tinham testemunhado, na noite anterior, mais um passo decisivo rumo à desintegração política, econômica e social, que, aparentemente, infecta o proverbial calcanhar de Aquiles de todos os impérios metidos a besta.
Rotineiramente mal-humorados, os oficias da imigração americana pareciam não acreditar que o tratamento para a sua ressaca eleitoral seria processar um Boeing 777 inteiro, cheio de brasileiros alegres e barulhentos, egressos dos agora felizes trópicos. O Brasil, certamente, está na moda, mas a moda ainda não pegou nos famosos guichês do aeroporto Dulles. Ah, como sofreram, naquela manhã cheia de contrastes e ironias históricas, aqueles incautos oficiais da lei, ordem, família e propriedade, na sua missão ingrata (e há muito perdida) de preservar a primeira linha de defesa do famoso, e já tão gasto, "American Way of Life"! Mais que eles, também nós, os passageiros, sofremos com a lentidão, soberba e a incompetência que, sejamos honestos, estendia-se democraticamente a nativos e alienígenas.
Folheando as páginas de passaportes impecáveis, muitos ainda completamente virgens, reproduzindo os mesmos rostos que, ao vivo, comprovavam o rumor de ser o Brasil um dos poucos rincões do planeta onde ainda é possível estampar o otimismo e a alegria, além de uma pequena dose de sarcasmo e ironia, como parte do seu cartão de visita, meus amigos da imigração (passo por lá tão frequentemente que alguns já sabem se o Palmeiras ganhou ou não, pela expressão do meu rosto) pareciam sonhar com emprego pleno, seguro saúde nacional, mais Bolsa Família, reservas estuporantes de petróleo, crescimento da economia de 7% e cantos de passarinhos que gorjeiam por aí, isso mesmo, onde você me lê nesse momento, prezado leitor, mas que há muito já decidiram emigrar de lá, onde estavam a sofrer aqueles oficiais sonolentos.
Passada essa barreira, decidi me aboletar na modesta área de espera de um dos portões de embarque e, enquanto minha conexão para Boston não chegava, aproveitei para usar meu laptop e ouvir música da terrinha. A saudade, como os senhores e senhoras podem imaginar, já batia forte. Nessa hora proibitiva para neurocientistas, poucos outros heróis de aeroporto estavam por perto. Ainda assim, sentou-se a meu lado um americano simpático, com cara de professor de Economia da Harvard. Estava eu a curtir o meu som tropical, quando de repente ao mover-me para tentar retirar um livro da mala, o meu fone de ouvido se soltou do computador e o saguão inteiro, com todos os seus gatos pingados, passou a desfrutar de um solo de violão sem igual desse lado da Via Láctea. Sorridente e solícito, o meu anônimo companheiro de espera matutina, não teve dúvida e arriscou um quebra gelo típico de economista neoliberal:
- Que maravilha! Andrés Segovia sempre me fascina.
- Não é Segovia não, meu senhor. - Já fui logo pondo um John Maynard Keynes na sopa do moço, em homenagem a meu grande amigo alviverde, presidente Luiz Gonzaga Belluzzo.
- Trata-se de um quase homônimo. Canhoto da Paraíba é o seu nome do violeiro.
- Mas não pode ser! Soa perfeito. Música dos deuses, como só o incomparável Segovia, de Granada, poderia produzir. Mas em que conservatório estudou esse senhor? Deve ter sido pelo menos aluno do grande mestre, não foi não?
- Acho pouco provável, a não ser que o grande Segovia tivesse aberto uma filial, na sacristia da matriz de Princesa Isabel, sertão da Paraíba, terra natal do menino Canhoto.
- Mas que fenômeno. Posso escutar mais um pouco?
- Como não, abolete-se e desfrute. Sinta-se em casa. Mestre Canhoto ficaria muito lisonjeado com seu interesse por seu violão.
- Paraíba, onde fica isso?
- Nordeste brasileiro, embaixo do Rio Grande do Norte, em cima de Pernambuco.
- Mas deve ser um paraíso essa tal Paraíba, para dar à luz um gênio musical como esse. Nunca ouvi nada igual.
- Realmente, é um paraíso. Lindo de fazer olho marejar. Mas para desfrutar dessa boniteza toda, carece de ter um outro tipo de olho, um outro tipo de ouvido. E definitivamente, precisa ter dedos muito ligeiros, como Canhoto tinha, para contar estórias que vem de lá. O senhor reparou que Canhoto tocava o violão com a mão esquerda e sem trocar a ordem das cordas?
- Não, não é possível! Ainda mais essa? Inacreditável!
- Pois é, meu amigo, o sertão nordestino não produz qualquer caboclo, não. Como toda forma de vida por lá padece muito, aqueles que conseguem vingar são pessoas valentes, destemidas e difíceis de dobrar. Quando menino, bem que tentaram forçar o menino Canhoto a aprender a tocar com a mão direita. Teimoso que nem um pau de Jurema, o moleque não se vergou. Escondido, aprendeu por si só uma forma de extrair o bemol e dó sustenido de ponta cabeça. Isso que é amor pela música. O resto é conversa. E não é que o truque funcionou? Garanto que nem o seu amigo Segovia aprontava uma dessas. Lá no sertão bravo do Nordeste, para vingar de verdade, precisa fazer que nem flor de cacto.
- E cacto lá tem flor? Que história de argentino é essa?
- Se tem, doutor. As danadas ficam escondidas por um bom tempo, protegidas por aqueles espinhos afiados, do tamanho de um prego. Aí, quando começa qualquer chuva miúda, coisa rara no sertão, elas florescem mais rápido do que o Canhoto compunha um choro. Abrem todas as bocas como se fosse um coral silencioso a repetir: "Quem disse que cacto não tem o direito de ser flor?". E assim, arregaladas, elas aproveitam cada gotinha doce que lhe permita sobreviver mais um dia, até que outra nuvem bendita, perdida naquele céu azulado, decida a chorar de tanta tristeza de ver aquela terra torrada, a caatinga queimada, e a boiada definhando... Canhoto era como flor de cacto. Florescer a qualquer custo, era a razão que lhe fazia dedilhar seu violão invertido até cansar, mesmo quando, lá na sacristia da matriz da valorosa Princesa Isabel, não havia ninguém para escutar quando ele abria a boca, que nem flor, e todo frajola se punha a cantar.
- Coisa muito interessante esse seu país tropical. Brasil, quem diria, o futuro finalmente chegou para vocês. Justo no momento que o nosso parece ter acabado. Aqui no Norte, ninguém acredita no que aconteceu com vocês. Agora, até lá em Harvard eu já vi gente dizer: "Que Obama que nada, manda chamar o tal de Lula, quem sabe ele consegue dar um jeito aqui em cima também".
Logo a seguir, embarcamos. Meu novo amigo fez questão de sentar-se a meu lado no avião novo em folha. Depois que ele estava bem confortável, pronto para começar a ler o seu Wall Street Journal, eu fiz questão de lhe apontar para o folheto de segurança da aeronave. Nele, podia-se ler claramente: "Embraer, made in Brazil!". Meu amigo murchou, emudeceu e não falou mais comigo. Constrangido, nem tive coragem de lhe dar a notícia que foi Santos Dumont que inventou o voo controlado, não os irmãos Wright.
Deu até dó. Realmente, aquele não era o dia dos gringos!
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Peruas de natal
Por Fernando de Barros e Silva, in Opinião FSP 20/12/2010
SÃO PAULO - Chama atenção, nos estacionamentos dos
shoppings paulistanos, abarrotados nesta época, a quantidade de carrões,
daqueles que mal cabem numa vaga normal. Estão ali,
exibindo a sua força, com seus traseiros enormes, apertados
como um brutamontes numa cadeira de avião. São Paulo está cheia
desses jipões high tec, dessas superperuas modernosas.
São conduzidas frequentemente por mocinhas,
ou jovens senhoras esquálidas e assustadiças,
numa esdrúxula combinação de fragilidade e truculência,
de poder e desamparo. Não se sabe se representam
a realização de um sonho ou antes a proteção de um pesadelo.
Sonho de consumo e pesadelo de viver nesta cidade.
É quase impossível não enxergar esses carros
como versões civis dos blindados de guerra.
Um amigo que morou em Londres conta que o governo
está patrocinando a isenção do IPVA local para carros pequenos ou
movidos a eletricidade. Lá o Estado faz o que pode
para dificultar a circulação de veículos. Há pedágio urbano
e as pessoas só podem estacionar sem custos
em seus próprios bairros. A contrapartida é um transporte
público que funciona. Mais ou menos o oposto do que temos
por aqui.
A tara pelas superperuas é o sintoma mais flagrante
de nossa opção histórica pelo transporte individual.
Ela está nos levando ao limite da irracionalidade.
Cada carro, em São Paulo -de uma frota de quase 6 milhões-
carrega, em média, menos de 1,5 passageiro. Já o sistema público
vive superlotado e ainda é muito precário. Acordamos muito tarde
para a importância do metrô, e as obras de expansão da rede vão
a passo de tartaruga.
Há pouquíssimas restrições ao uso do carro em São Paulo.
Temos, isso sim, uma indústria avançada de multas de trânsito
(cerca de 600 mil por mês na capital)
e uma rede de estacionamentos privados faturando loucuras.
O carro é tão inviável quanto lucrativo. Por isso temos tantos carrões
e nenhuma política de transporte digna do nome.
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
São Paulo tem 290 mil imóveis sem moradores, diz IBGE
07 de dezembro de 2010 | 11h 34
- - Agência Estado
O número de domicílios vagos na cidade de São Paulo seria suficiente para atender toda a população paulistana que vive hoje em áreas de risco, cerca de 130 mil famílias. Há na capital paulista cerca de 290 mil imóveis que não são habitados, segundo dados preliminares do Censo 2010 divulgados ontem. O déficit habitacional, no entanto, é bem maior - são 712 mil famílias, incluindo habitações irregulares ou precárias, como favelas e cortiços.
Os recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) encontraram 3,9 milhões de domicílios residenciais na capital, onde vivem 11,2 milhões de pessoas. "Foram contabilizadas cerca de 107 mil casas fechadas, que são aquelas em que alguém vive lá e não foi encontrado para responder ao questionário, mesmo após exaustivas tentativas", diz a coordenadora técnica do Censo 2010, Rosemary Utida. Já as 290 mil residências classificadas como vazias não têm moradores.
O Censo de 2000 já mostrava que a capital tinha mais casas vazias do que gente precisando de um lugar para morar, segundo a urbanista Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). "Em 2000, tínhamos cerca de 420 mil domicílios vagos para um déficit de pouco mais de 203 mil moradias. A oferta de casas vazias era quase o dobro", afirma Raquel.
Moradia popular
A relatora da ONU avalia que, mesmo que parte desses imóveis precisasse passar por reforma antes de ser destinada à moradia popular, seria possível, pelo menos, reduzir o número de sem-teto. Outros especialistas discordam. "Esses imóveis vagos, mesmo que sejam reformados, não seriam destinados para habitação popular, não seriam para essa faixa da população, mas para renda mais alta", diz a arquiteta Heloísa Proença, ex-secretária de Planejamento Urbano da Prefeitura.
O secretário municipal de Habitação, Ricardo Pereira Leite, afirma que os imóveis vazios se devem a "um fenômeno que os urbanistas chamam de vacância de equilíbrio". "Quando você se muda, seu imóvel antigo está vazio, e o novo também. No Brasil, urbanistas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) estimam que a vacância de equilíbrio deve ser em torno de 8%. Se for analisar, os 290 mil imóveis vão dar 7,9% do total de domicílios da capital. Em Nova York, uma cidade em que todo mundo quer morar, essa taxa é de 6%", diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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