domingo, 1 de março de 2020

Hélio Schwartsman Direito à morte, FSP

O que o Estado pode legitimamente fazer é regulamentar a matéria

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Poucos dias depois de o Parlamento português ter legalizado a eutanásia, o Tribunal Constitucional da Alemanha invalidou uma lei que vedava o suicídio assistido por médicos, que agora ficam liberados para auxiliar pacientes a dar cabo da própria vida.
Conservadores veem aí um sinal do fim dos tempos. De minha parte, prefiro inscrever o fenômeno no movimento mais amplo, e absolutamente desejável, de afirmação do conceito de indivíduo e ampliação de seus direitos, que, no Ocidente, teve início no século 17 e se estende até hoje.
Manifestantes protestam contra a eutanásia, perto do Parlamento em Lisboa
Manifestantes protestam contra a eutanásia, perto do Parlamento em Lisboa - Rafael Marchante - 20.fev.2020/Reuters
São várias as mudanças que se explicam por essa chave interpretativa. Elas incluem a abolição da escravidão, a criação de normas que asseguram a liberdade de expressão, o direito ao divórcio e ao aborto, o fim de leis que discriminavam homossexuais e outras minorias, a legalização de drogas recreativas e, mais recentemente, avanços normativos que consolidam a autonomia de pacientes em relação aos cuidados de fim de vida.
No mérito, não vejo como discordar dessa tendência liberalizante. Assim como não cabe ao Estado determinar o que duas ou mais pessoas fazem consensualmente em matéria de sexo entre quatro paredes, não pode o poder público obrigar uma pessoa a seguir vivendo contra a sua vontade nem impedi-la de buscar socorro profissional para resolver as coisas em seus termos.
O que o Estado pode legitimamente fazer é regulamentar a matéria, para evitar que crimes reais sejam cometidos sob o pretexto da beneficência e para sistematizar as formas pelas quais o paciente ou seus representantes devem requisitar uma intervenção médica para pôr fim à vida.
Do mesmo modo que o divórcio não acabou com a família nem a afirmação dos direitos de gays levou à extinção da espécie, soam infundados os temores de que o suicídio assistido e a eutanásia produzirão uma distopia em que comitês da morte decidirão pela eliminação de doentes pobres.
 
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
  • 7

Guerra do Paraguai terminou há 150 anos, mas feridas seguem abertas, FSP

Aniversário do conflito serve para refletir sobre tradição latino-americana de confiar em salvadores da pátria

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"Morro com meu país!"
Proferida num 1º de março como este domingo há 150 anos, a frase foi a última dita pelo marechal Francisco Solano López (1827-1870) antes do tiro que colocaria fim à sua vida e determinaria a derrota de seu país na Guerra do Paraguai.
Pode soar apenas como a triste despedida de um militar patriota que perde a vida no campo de batalha. Mas é mais do que isso.
Detalhe da pintura "A Batalha do Avaí", de Pedro Américo, sobre uma batalha da Guerra do Paraguai
Detalhe da pintura "A Batalha do Avaí", de Pedro Américo, sobre uma batalha da Guerra do Paraguai - Divulgação
Guerra do Paraguai (1864-1870) não apenas significou o desaparecimento da figura cruel de Solano López como criou mitos e disputas ideológicas sobre o conflito.
Também moldou a identidade paraguaia, causou extrema destruição à economia e à população do país, enquanto serviu a governantes autoritários para forjar uma narrativa de patriotismo que justificaria atrocidades, cometidas muitos anos depois da morte do marechal.
Há farta literatura histórica para explicar como Brasil, Argentina e Uruguai se uniram contra o Paraguai.
Pouco existe, porém, de reflexão sobre essa ferida que completa 150 anos ainda aberta.
As estimativas de mortos variam, mas algo em torno de dois terços da população paraguaia teria sido eliminada —a maioria composta por homens.
Com a derrota, o Paraguai perdeu território para o Brasil e para a Argentina. O que restou ficou com os grandes fazendeiros locais que fizeram acordos com os vencedores, criando uma desigualdade que permanece até hoje —85% das terras pertencem a apenas 2,5% de proprietários.
A questão da identidade paraguaia é mais difícil de medir. Mas basta dizer que houve leituras e releituras desse passado.
Para alguns, Solano López foi um idealista anti-imperialista que, por confrontar as grandes potências, precisava ser dizimado.
Para outros, um ditador cruel que entregou seu país para o que seria um massacre desnecessário. O que nos leva a outro ponto complicado. 
Reprodução de foto de Francisco Solano Lopez
Reprodução de foto de Francisco Solano Lopez - Ministerio de Defensa/AFP
Em momentos em que o Paraguai se viu nas mãos de tiranos, como o general Alfredo Stroessner (1954-1989), Solano López foi resgatado como herói, por sua mão de ferro em defesa de interesses nacionais —enquanto isso, opositores ao regime militar eram massacrados.
Em outros momentos, como aqueles em que o Paraguai entra em fricção com o Brasil por causa da divisão da produção de energia de Itaipu, o massacre capitaneado pelo Brasil sobre o país no século 19 também volta a ganhar vida como algo que ainda espera uma espécie de revanche.
A guerra também afetou as mulheres. Outro dia, num táxi em Assunção, o motorista me disse: "Aqui não tem problema um homem ter várias mulheres, os militares diziam que precisávamos procriar para fazer o país prosperar. Meu avô ainda pensa assim. Agora, o movimento feminista tenta reverter isso, mas o machismo é algo instalado".
Esse rapaz tem 20 e poucos anos e pensa diferente, mas suas antepassadas sofreram as sequelas silenciosas da guerra, quando as mulheres assumiram a economia familiar, aguentaram abusos e procriaram por patriotismo.
O aniversário de 150 anos do fim da Guerra do Paraguai deve servir para refletir sobre os custos dessa terrível tradição da América Latina de confiar tanto em quem se apresenta como salvador da pátria.
Sylvia Colombo
Correspondente em Buenos Aires, foi editora da Ilustrada e participou do programa Knight-Wallace da Universidade de Michigan.