domingo, 2 de fevereiro de 2025

Identidades mortas a caminho, Muniz Sodré, FSP

A maior preocupação da plutocracia que acaba de chegar ao poder com Trump é hoje a imortalidade. Jeff Bezos, da Amazon, pesquisa o elixir da juventude, enquanto Sergey Brin e Larry Page, donos da Google, concentram-se numa startup ("Calico") cujo objetivo é "matar a morte". Mas há colaterais de menor porte: movidos por achados arqueológicos, cientistas vêm se declarando prontos para ressuscitar animais extintos, do mamute ao pássaro dodô. O DNA das fezes e do vômito de dinossauros é o caminho técnico.

O dodô existia até o século 17 nas ilhas Maurício, no Índico, desaparecendo 100 anos após a chegada dos humanos. Anacronismo vivo, semelhante a um pombo de um metro de altura, tinha asas, mas não voava, não tinha medo de humanos, nem sequer de marinheiros esfomeados. Foi caçado até o último exemplar, mas ficou como símbolo da indiferença suicida. Ressuscitar o extinto é só uma variável dos projetos de extinção da morte.

Esqueleto do dodô no Museu de História Natural em Port Louis, nas ilhas Maurício; ave foi extinta há mais de quatro séculos e que é objeto de estudo de criação por meio de engenharia genética - Crédito Cláudia Collucci - 26.mar.24/Folhapress

O documentário "Eternal you" mostra a IA simulando conversas de vivos com mortos. Mas o passado projeta-se também para iluminar aspectos obscuros de identidades culturais presentes. É que, em matéria de evolução, não existe escala única como padrão hierárquico para os diversos modos de existência. Técnicas e objetos sempre foram vetores de energia em culturas tradicionais, como entre os europeus, com o diferencial do grau de desenvolvimento das forças produtivas. O que era sagrado e festivo perdeu a vez para o mercantilismo.

É preciso, assim, distinguir formas holísticas de vida nas sociedades tradicionais das formas mortas que rondam a atualidade. Hoje se assiste a uma mutação radical na espécie humana, em que são convergentes criação orgânica e criação artificial: tecnologia não é mais um outro do humano, é também o seu constituinte. São metamorfoses que ainda não se medem cientificamente, mas podem ser sentidas no cotidiano.

Ou assustadoras sob formas caóticas. Uma delas é a obsessão com identidades mortas, tematizadas no imaginário como mortos-vivos, infecciosos e mortíferos. Fantasias do medo radical, que é o medo da morte. E a solução fantasiosa para a ameaça é sempre o emprego de armas, cada vez mais criativas e poderosas. Coisa natural para os americanos, cuja cidadania está ancorada no passado miliciano da independência e da guerra civil. Arma virou agora fonte de identidade. No Natal, pais deram pistolas verdadeiras de presente a crianças de seis anos.

Esse fascínio atemorizado pela morte decorre de uma alergia à vida, por um mal-estar civilizatório insuperável, já que a prosperidade predatória é outra face da morte do planeta. A Constituição americana consagra o direito individual de busca da felicidade, mas o país é sem alegria real, pois alegria ensina que felicidade é comunhão de vida. Importam apenas negócios e, agora, esperança de futuro em Marte com o homem imortal, o cyborg, pesquisado por Musk. Vale perguntar o que nós mortais temos a ver com isso. Nada, responderia o bom senso. Mas a ultradireita sempre encontrará nas redes o vômito de algum dinossauro político para o DNA da mistificação. Por isso é bom ter em mente que, no regime "imperial libertário" tramado pelos plutocratas, democracia é o pássaro dodô da vez. 

Ruy Castro - Paul Newman aos trinta, FSP

 Paul Newman, um dos grandes de Hollywood, teria feito cem anos no dia 26 último. Paul Newman, cem anos! Não combina. Aos cem anos, o sujeito é levado a tomar sol sentado numa cadeira e com uma manta xadrez nas pernas. Eu sei, é só um clichê, e eu próprio tenho amigos que estão perto da marca e longe dessa descrição. Mas Paul Newman não foi feito para ter cem anos, e sim, sempre, trinta. Minha amiga Rita Kaufman, jornalista, me disse certa vez: "Se Paul Newman, aos trinta anos, tocasse o meu interfone pedindo para subir, eu já o receberia de baby doll."

Mas os trinta anos de Paul Newman sempre foram uma fantasia. Mesmo em seus primeiros e grandes papéis, como Billy the Kid em "Um de Nós Morrerá", o Brick de "Gata em Teto de Zinco Quente" (ambos 1958), o Eddie de "Desafio à Corrupção" (1961), o Chance de "Doce Pássaro da Juventude" (1962) ou o Hud de "O Indomado" (1963), já tinha deixado os trinta para trás. Aliás, quando fez seu primeiro filme para valer, "Marcados pela Sarjeta", em 1956, como o boxeur Rocky Graziano, já tinha 31.

O ator Paul Newman - Reuters

Com alguns anos de diferença entre eles, Newman fez parte de uma geração única: Montgomery Clift, de 1920; Marlon Brando, de 1924; ele, de 1925; Steve McQueen, de 1930; e James Dean, de 1931. Todos estudaram teatro em Nova York com Lee Strasberg ou Stella Adler, todos fizeram o gênero "rebelde" em Hollywood e, na tela, todos usavam os mesmos truques: mãos nos bolsos de trás, queixo enterrado no peito, longos silêncios antes de falar e uma dicção abafada, como se falassem com as gengivas.

No cinema ou no teatro, Brando herdou papéis de Clift, Dean herdou papéis de Brando, Newman herdou papéis de Dean, e McQueen, que não herdou papéis de ninguém, devia sofrer horrores ao ver seus colegas consagrados enquanto ele ainda filmava besteiras, como "A Bolha Assassina", de 1958, e custava a estourar.

Newman foi, disparado, o mais longevo. Trabalhou até morrer, em 2008, com 83 anos. E, de alguma forma, era como se ainda tivesse trinta.

Hélio Schwartsman - Mitos progressistas, FSP

 Quando você encontra seu malvado favorito na cena do crime, raramente se pergunta se ele é mesmo o culpado. O viés de confirmação é um traço psicológico ubíquo. Em algum grau, todos o apresentamos. Mas quem está interessado em descobrir a verdade deveria se esforçar para avaliar corretamente as evidências, sem desconsiderar a possibilidade de o seu malvado favorito ser inocente.

É bem nesse espírito que o filósofo Michael Huemer escreveu "Progressive Myths", obra na qual recorre a contextualizações e à matemática para desconstruir teses que se tornaram caras à esquerda. Seus alvos incluem a ideia de que mulheres ganham muito menos do que homens para fazer o mesmo trabalho e a de que os americanos ricos pagam menos impostos do que a classe média.

A imagem mostra uma cena de crime animada com um fundo vermelho. Há uma fita amarela com a inscrição 'CRIME SCENE DO NOT CROSS' cruzando a imagem. No chão, está o contorno de um corpo. Um personagem com uma expressão séria, vestido com um casaco escuro e uma cachecol listrado, observa a cena. Uma mão apontando para o contorno do corpo é visível à esquerda.
Annette Schwartsman

O livro é bem polêmico, porque Huemer não hesita em atacar os novos consensos progressistas em torno de temas como racismo, sexismo, capitalismo, questões de gênero etc. Pode-se, é claro, discutir se a contextualização proposta pelo autor é a melhor, mas é preciso reconhecer que, no mínimo, ele mostra que a questão é mais complicada do que sugerem as palavras de ordem.

Muitos podem ficar tentados a afastar os questionamentos de Huemer classificando-o como um extremista de direita empenhado em reforçar os mecanismos de opressão, mas isso seria falso. Parece-me mais correto inscrever o filósofo na tradição do saudável ceticismo, com toques de anarquismo (seu pensamento é próximo ao do de Bryan Caplan). Se neste livro Huemer volta suas baterias contra a esquerda, há outros textos em que ele descasca a direita, cujos mitos são, na sua opinião, ainda mais tolos.

Na parte final da obra o autor discute as razões por que mitos ideológicos se propagam e mostra alguns dos mecanismos pelos quais eles podem ser socialmente corrosivos. Para ele, militantes empenhados em melhorar o mundo deveriam seguir a lição de Hipócrates e tentar se assegurar de que, antes de mais nada, seus métodos não causem mal ("primum non nocere").