quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Jari, a Fordlândia 2.0, Elio Gaspari, FSP

Joia da coroa para a ditadura, projeto na Amazônia foi mau negócio que uniu governo, empresários e banqueiros amigos

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A repórter Stella Fontes informa: “Endividada, a Jari agoniza”. Deve R$ 1,75 bilhão. Sua recuperação judicial foi suspensa e não tem como pagar aos 750 empregados de sua fábrica de celulose, encravada na floresta amazônica.
Pode parecer mais uma história de fracasso numa época de crise. É muito mais, verdadeira aula sobre algo que poderia ter dado certo, deu errado e, ao longo de 30 anos, foi dando mais errado.
Projeto Jari foi a primeira joia da coroa da ditadura. Coisa de sonho: nos anos 1960, Daniel Ludwig, um dos homens mais ricos do mundo, comprou 160 mil km² (um Líbano e meio) na divisa do Pará com o Amapá. Trouxe do Japão, por mar, uma fábrica de celulose e uma termelétrica.
Construiu uma cidade, plantou gamelinas, arroz e queria explorar bauxita. Septuagenário sem herdeiros, avarento e misantropo, tomava leite com vodca. Deu tudo errado. Crucificado no lenho do nacionalismo xenófobo que envolve a Amazônia, Ludwig fez as malas e foi embora.
Trem carregado com eucalipto do Projeto Jari em ferrovia que atravessa a floresta no Amapá
Trem carregado com eucalipto do Projeto Jari em ferrovia que atravessa a floresta no Amapá - Lalo de Almeida - 10.set.17/Folhapress
Quem ouve falar da Jari tende a compará-la à Fordlândia, sonho de outro magnata misantropo. Em 1928 Henry Ford comprou 10 mil km² (um Líbano), onde pretendia plantar 2 milhões de seringueiras e também planejou uma cidade.
Deu tudo errado e em 1945 a propriedade foi vendida por 1% do seu valor. Nenhum negócio de Henry Ford ou de Daniel Ludwig deu tão errado.
As semelhanças terminam aí. Ludwig não saiu como Ford. Em 1982 ele perdeu algo como US$ 1 bilhão, mas deixou o projeto no colo da Viúva e o governo organizou um consórcio de empresários para ficar com a Jari. À frente, entrou o magnata Augusto Trajano de Azevedo Antunes, um dos maiores empreendedores do seu tempo. Numa carta de 20 de janeiro de 1982 ao presidente João Figueiredo, ele foi claro:
“Entendo que recebi uma missão do governo. (...) Ao se incumbir alguém de uma missão, cumpre propiciar-lhe também os meios indispensáveis para bem executá-la”.
Queria investimentos públicos, uma hidrelétrica e, sobretudo, simpatia para o “cumprimento de missão de alta relevância nacional”.
Um mês depois o Banco do Brasil entrou no projeto e ficou com 12% das ações da holding.
Coisa da ditadura? Nem tanto. Em 1994, depois de visitar o projeto, o candidato Lula informava: “O Ludwig foi um sonhador. Passei 20 anos da minha vida esculhambando a Jari, mas hoje o Brasil tem novos empresários”.
Referia-se aos netos de Antunes que tocavam o projeto. Lula perdeu a eleição para Fernando Henrique Cardoso. Em 1996 FHC sabia que o BNDES estava metido com 20% de participação na Jari e que era “grave a situação”.
Meses depois a empresa entrou em concordata branca e metade da dívida estava com a Viúva. Em 2000 a Jari foi vendida ao grupo Orsa, sob aplauso dos credores (a Viúva tinha um terço desse espeto). Por algum tempo conseguiu respirar, até que afogou-se e hoje o BNDES está com um mico de R$ 790 milhões.
Em 2010 o professor americano Greg Grandin publicou no Brasil seu livro “Fordlândia - Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva”. Contou a história de um empresário que fez um mau negócio e foi em frente.
Algum dia alguém contará a história da Jari, um mau negócio no qual o governo entrou, juntando-se a empresários e banqueiros amigos, sempre dispostos a cumprir uma “missão de alta relevância nacional”.
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Antonio Delfim Netto Volcker e Simonsen, FSP

A nomeação de Volcker para o Fed levou à demissão do ministro Simonsen

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Faleceu, em 8/12 último, Paul Volcker, que serviu ao seu país, os EUA, por mais de 30 anos (a governos democratas e republicanos) na dura tarefa de manter íntegro e funcional o seu sistema financeiro.
Quando a inflação americana atingiu 12% ao ano em agosto de 1979, o então presidente Jimmy Carter (1977-81), democrata, convocou-o para domá-la. Nomeou-o chairman do Federal Reserve. Em julho de 1981, usou toda a potência da política monetária. Elevou a taxa básica do FED para 19%, o que produziu um choque recessivo dramático que atingiu o mundo.
Ele elevou a taxa de desemprego e custou a reeleição de Carter. Foi eleito Reagan, que manteve Volcker. Em 1983, a taxa de inflação tinha retornado a 3% ao ano, e o mundo tinha quebrado! Quando confrontado com a incômoda afirmação "o senhor quebrou o Terceiro Mundo para salvar os bancos americanos", respondeu com um lacônico: "Essa era a minha tarefa".
Paul Volcker, em foto de 2010 - AFP
O leitor deve estar curioso. Por que essa louvação a Volcker? Porque acredito que sua nomeação para o Fed em 6/8/1979 foi a "causa causata" da demissão do grande ministro Simonsen, que já confidenciara a um amigo "ter decidido ir embora para não ter que dizer ao presidente Figueiredo que a taxa de inflação chegará a 50%". A demissão foi formalizada em 10/8.
Mario Henrique Simonsen foi a mais brilhante inteligência capturada, no Brasil, pela teoria econômica. Beirava a genialidade. Creio que sua decisão foi antecipada, porque ele previu as consequências da política de Volcker: o efeito devastador da elevação da taxa de juros sobre a enorme dívida acumulada no governo Geisel (do qual foi ministro da Fazenda) tornaria o Brasil insolvável e inadministrável. Demitiu-se e foi embora às pressas, sem fechar o Orçamento para 1980.
Na carta de demissão, disse: "Temi que a presença à frente da Seplan de um ex-ministro da Fazenda confundisse (...) o próprio Governo quanto ao papel da Secretaria de Planejamento da Presidência. Como Secretaria, trata-se de um simples órgão de assessoramento do presidente em assuntos econômicos e, ao contrário do que muitos presumem, falta-lhe estrutura e poderes para atuar como Ministério da Coordenação Econômica".
A verdade é que o governo já não controlava o seu partido, exatamente por ter nomeado Simonsen, a quem o partido criticou ferozmente no governo Geisel. Quem tiver dúvida, consulte a ata da reunião da Arena de 8/9/1979, na qual se culpou Geisel pela tragédia do petróleo e se propôs o fim do até então sagrado monopólio da Petrobras. Ou então, melhor, leia a "Ditadura Acabada", um clássico de Elio Gaspari.
O resto é apenas lenda urbana.
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.