domingo, 14 de abril de 2019

Brasil 'cantando galinha', FSP

Presidente oferece Alcântara de mãos beijadas

O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha - Keiny Andrade - 29.mar.17/Folhapress
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
Na primeira metade do século passado era comum aos domingos, no interior paulista e mineiro, em vez da missa, sitiantes e moradores de pequenas cidades se reunirem em torno de rinhas de galos.

O dono do perdedor por vezes interrompia o combate. Em outras ocasiões, a luta prosseguia até o fim, ou seja, com a morte de um dos contendores. Havia, entretanto, raras vezes em que o galo perdedor anunciava sua rendição com um cacarejo baixo, agudo e sofrido. Dizia-se que “cantou galinha”. O destino do galo que canta galinha é a panela.

Logo depois do fim do regime militar houve no Congresso, durante a Constituinte, uma discussão sobre definição da indústria nacional. Convocado, defendi a distinção entre empresa de capital nacional e empresa multinacional. Perdi, e o Brasil cantou galinha. Havia pressão dos americanos.
 
Com isso, o país perdeu a possibilidade da eventual proteção de sua indústria, como todos os países, inclusive os desenvolvidos, praticam.

À mesma época fui convidado a defender a reserva de mercado para minicomputadores. Fui derrotado. A pressão dos Estados Unidos foi imensa. O Brasil cantou galinha mais uma vez, pois foi aniquilada a nascente indústria digital brasileira.

Em seguida veio o debate sobre o Sivam, cujo contrato permitia aquisição de equipamentos e serviços em qualquer país, exceto no Brasil. Novamente lá fui eu ao Congresso para ser derrotado. E o Brasil cantou galinha mais uma vez.

Na semana seguinte esta Folha noticiou a avalanche de ementas pagas aos projetos dos parlamentares que apoiaram o Sivam. E a nascente indústria nacional de radares e sensores foi para o brejo.
E aí veio a obscena lei de propriedade industrial. Eu, fazendo o meu habitual papel de nacionalista bobo da corte, lá fui ao Congresso Nacional. Obviamente, fui derrotado.
[ x ]
O Ministério da Ciência e Tecnologia, da mesma administração federal FHC, constatou que 1.050 estações de produção do setor de química fina foram extintas e 350 novos projetos, abandonados. E o Brasil já estava ficando rouco de cantar galinha em rendição às ameaças do ogro americano, cujo governo, contrariamente do que faz o brasileiro, coloca todo o seu poderio a serviço de suas empresas, pois é lá que reside o próprio poder americano.

Chega então ao Congresso Nacional a proposta de ocupação de Alcântara por uma base militar americana. Para lá fui. Eis que o Brasil decide preservar a soberania nacional. Uma vitória, enfim. O que as ditas autoridades não percebem é que o que é válido para o galo de briga, também o é para o cidadão, para a tribo, para a nação. Os americanos, como todos os povos, desprezam os submissos, os serviçais.

Pois bem, agora, para adoçar a boca da América, o presidente do Brasil oferece Alcântara de mãos beijadas, abdica da simbólica relação de reciprocidade entre iguais no uso de passaporte e, muito pior, vai, ele próprio, o presidente, beijar as mãos do chefe da CIA, a organização que tem como missão a espionagem, a vigilância e a “sabotagem” de interesses de outros países, tais como o Brasil. O destino daqueles que “cantam galinha” é a panela.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
Físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente do Conselho de Administração do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais)
TÓPICOSRELACIONADOS

    Bolsonaro ataca o governo, FSP

    Caso Petrobras é só uma tolice de uma gestão à beira de não ter como pagar contas

    Não é muito difícil o governo inventar uma história para arrumar a bagunça que fez ao meter a mão nos preços da Petrobras, desde que tome tenência. Mas:
    1) esses disparates deixam sequelas, que se acumulam e têm custos para a economia inteira;
    2) Jair Bolsonaro faz fama de que é um caminhão desembestado, que se move por caprichos, pinimbas e impulsos na estrada da demagogia. Até agora, não funcionam os freios tutelares, de generais ou outros;
    3) o presidente já prepara outros atentados contra seu governo. Gente que não se ocupa de finanças, o povo em geral, acha que esses colapsos de preços na Bolsa são brincadeirinha de especulador. Não é bem assim.
    A venda em massa de ações da Petrobras é um aviso. A queda do valor da empresa significa que os investidores não querem negócio com uma companhia sujeita a controle de preços e outras tolices que reduzem lucros ou causam dano ainda pior.
    Caso a besteirada persista, o desconto no valor das ações será maior, assim como vai aumentar o custo de a empresa levantar recursos no mercado, de se financiar por empréstimos ou outros meios.
    Arrazoado semelhante vale para a economia inteira, para o custo de financiamento do governo (juros) e, por tabela, para as empresas do país.
    Mesmo com os tantos recuos do governo, bobagens e incompetências frequentes em política e economia deixam sequelas: um dólar mais caro, juros de médio e longo prazo mais altos, Bolsa mais barata, risco maior. Em suma, fica mais caro fazer negócio. As empresas investem menos. Em resumo simples, assim a economia cresce menos. 
    Já está acontecendo de novo.
    O preço do diesel não foi o único dedaço de Bolsonaro na Petrobras. O presidente prometeu investimento da petroleira em Israel, por exemplo (apenas ele descobriu que haveria um maná de óleo na costa israelense?). Já mexeu na periodicidade do reajuste do diesel. Vai se emendar?
    Governo mais falido
    Com jeito, o governo ainda pode atenuar esses estragos. Falta combinar com Bolsonaro.
    Está claro nos ministérios e claríssimo no Ministério da Economia que, se não entrar um dinheirinho extra, o governo não vai ter como pagar alguns serviços no fim deste ano. Sim, vai ter de parar atividades sérias; algumas partes da administração já funcionam apenas no papel, motores sem gasolina. 
    Mas Bolsonaro ainda pensa seriamente em anistiar dívidas de ruralistas, algo em torno de R$ 11 bilhões, para ficar em apenas um exemplo de tolice séria que vem por aí.
    Gente graduada de vários ministérios diz que o Brasil já não está pagando compromissos com organizações internacionais, por exemplo. 
    O investimento em obras vai cair dos cerca de R$ 53 bilhões do ano passado para algo entre R$ 35 bilhões e R$ 40 bilhões neste 2019 (em valores de hoje): a uns 40% do que era em 2014 (como proporção do PIB).
    Se houver a graça para os ruralistas, vai haver asfixias e necroses de partes da administração.
    Todo o investimento federal em obras viárias (estradas etc.) no ano passado ficou em R$ 10 bilhões, menos que o dinheiro da anistia dos ruralistas. Cortar ainda mais obra em andamento é contraproducente e acelera a ruína da infraestrutura. “Ou vão cortar submarino nuclear, aviões de combate?”, pergunta um alto burocrata do governo sobre o orçamento de investimento ora mais privilegiado, o da Defesa.
    Ainda não é uma situação Rio de Janeiro. Mas já dá para sentir o cheiro da maresia.
    Vinicius Torres Freire
    Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).