quarta-feira, 13 de junho de 2012

Vexame ambiental


Xico Graziano
Que Código Florestal, nada. O grande fiasco brasileiro na Rio+20 se esconde no etanol. O país que ensinou ao mundo como trocar a gasolina fóssil pelo álcool renovável engata marcha ré na utilização do combustível limpo. Um vexame ambiental.
Pode-se comprovar facilmente esse retrocesso na bioenergia. Em 2011, o consumo dos combustíveis derivados de petróleo - gasolina principalmente - cresceu 19%, enquanto o uso do etanol nos veículos despencou 29%. Não precisa dizer mais nada. Anda na contramão da história a matriz energética dos transportes no Brasil.
Aconteceu que os consumidores reagiram ao desequilíbrio de preços a favor da gasolina. Duas razões básicas explicam a mudança do mercado. Primeiro, o governo federal tem reduzido o encargo da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre a gasolina, taxa que nos últimos anos recuou de 14% para 2,6%. Em consequência, acabaram praticamente equiparados os custos tributários de ambos os combustíveis. Uma política moderna de sustentabilidade, como buscada em todo o mundo, procederia ao contrário, ou seja, reduziria a carga tributária sobre o biocombustível, não sobre o derivado de petróleo.
Trata-se, obviamente, de uma decisão política, arcada pelo governo federal desde 2002. Com a redução da referida taxa, a Petrobrás, que normalmente deveria ter elevado o preço dos derivados de petróleo para manter sua competitividade global, se compensa pela perda de rentabilidade recolhendo menos imposto ao governo. Tudo dissimulado. Conta paga pela sociedade.
Em segundo lugar, a gasolina barata segura, obviamente, o preço do etanol na bomba, roubando margem dos produtores. Pouco lucrativa, a atividade alcooleira vê sua matéria-prima se direcionar para a fabricação de açúcar, movimento que se observa há tempos nas usinas. Bastante rentável no mercado internacional, o açúcar estimula a pauta das exportações. Resultado: a oferta de etanol se retrai, tendendo a elevar seu preço no posto de combustível, espantando a freguesia. Elementar.
O Brasil produziu cerca de 28 bilhões de litros de etanol nesta última safra (2010/2011). Nos EUA o volume já ultrapassou 50 bilhões de litros. Incrível. O país que inventou o Proálcool, obtido a partir da cana-de-açúcar, está tomando poeira dos gringos, que destinam 40% de sua safra de milho para a fermentação alcoólica. Mais ainda. A necessidade de manutenção de estoques confiáveis começou a exigir volumosas importações de etanol. Sabem de quem? Dos norte-americanos, claro. No ano passado, o Brasil comprou acima de 1,1 bilhão de litros de etanol dos EUA. Acredite se quiser.
Não é à toa que paira desilusão no setor sucroalcooleiro. Estimulados pela agenda da economia verde, nos transportes viabilizada definitivamente com a geração dos motoresflex fuel, inéditos e fortes grupos, nacionais e multinacionais, entraram na atividade. Anunciaram planos formidáveis que, após quatro anos, micaram, roubando o fôlego do parque alcooleiro. Notícia ruim chega dos canaviais. E quem pensa que é chororô de usineiro se engana feio. Corretores garantem que 20% das usinas do Centro-Sul estão à venda. Sem comprador. As chamadas greenfields, novas plantas a serem construídas, em vários Estados, ficaram no papel. O pouco dinamismo existente advém da ampliação e modernização de fábricas já instaladas. Passos de tartaruga no etanol.
Milhares de estudiosos, ambientalistas e jornalistas se encontrarão logo mais na Rio+20. O governo brasileiro fará ginástica para justificar o inexplicável. Enquanto as nações se debruçam para encontrar soluções capazes de esverdear sua (suja) matriz energética, por aqui se desperdiça uma oportunidade de ouro, retrocedendo no uso do combustível renovável.
Os produtores de cana-de-açúcar e os usineiros de etanol, por sua vez, lançaram por aqui o Movimento Mais Etanol, querendo influenciar a mídia e sensibilizar o governo para sua agenda. Eles se propõem a dobrar de tamanho até 2020 - o que, ademais, geraria 350 mil empregos diretos -, mas precisam viabilizar uma estratégia de política pública que devolva ao etanol a competitividade roubada pelo controle dos preços da gasolina. Basta, de cara, reduzir a carga tributária sobre o biocombustível.
Gasolina barata e etanol caro acabam criando um círculo vicioso contra o meio ambiente, prejudicando a saúde pública. Segundo a Agência de Proteção Ambiental norte-americana (EPA, na sigla em inglês), o etanol derivado da cana-de-açúcar pode ajudar a reduzir até 91% o efeito estufa da Terra, quando comparado com as emissões advindas da queima de gasolina. Mas, curiosamente, o ambientalismo pouca bola dá para essa tragédia da poluição urbana. O foco de sua ferrenha atuação, conforme se verificou na questão do novo Código Florestal, mira no assunto da biodiversidade. Contra o desmatamento.
A intolerância dos ambientalistas agride os agricultores, como se do campo partisse todo o mal contra a natureza. Citadinos, eles poupam as desgraças ecológicas provocadas pela urbanização, a começar pelos escapamentos veiculares. Novos estímulos públicos ao setor automobilístico favoreceram agora as montadoras. Nenhum compromisso ambiental se firmou. Pouco importa, tristemente, aos radicais verdes.
Tal miopia do movimento ambiental, infelizmente, ajudará o governo a esconder, na Rio+20, o retrocesso na agenda do etanol. Seria interessante, aliás, como subproduto da reunião, discutir para onde caminha o ambientalismo brasileiro.
A incrível capacidade fotossintética do Brasil garante enorme vantagem na produção de biocombustível, energia renovável misturada com geração de empregos. Desprezá-la significa maltratar o etanol, um filho da Pátria.
* AGRÔNOMO, FOI SECRETÁRIO DE AGRICULTURA E SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO. E-MAIL:XICOGRAZIANO@TERRA.COM.BR 

domingo, 10 de junho de 2012

Ao jegue, com carinho



Submisso e glorioso, resignado e irredutível, é como se ele nos olhasse, compadecido, e dissesse: 'Não se preocupe. Vai passar'

10 de junho de 2012 | 5h 50
Gilles Lapouge
Está na hora de lembrar dos jumentos. Os jornais falam muito do Festival de Cannes, do aquecimento global, do naufrágio da Grécia, mas aos jumentos quase ninguém se refere. O cavalo é mais favorecido. É sempre o foco da atenção pois tem elegância, brilho. Domingo vai às corridas, onde caminha gingando como uma estrela de cinema. Os homens usam belas calças e as mulheres lindos chapéus para montar nele.
O jumento não tem a mesma presença. É chamado de "burro" e de "asno". Palavras ofensivas. Tem cor de estopa. É desnutrido. Por que esse rosário de afrontas? Se eu fosse jumento, faria um motim. Brigitte Bardot falou recentemente dos jumentos, os do Brasil. Ela ficou furiosa ao saber que o Rio Grande do Norte, visando a criar uma nova fonte de renda, teria aceitado exportar 300 mil jumentos por ano para a China para nutrir as indústrias alimentícias e cosméticas desse país. Eu compartilho da cólera de Brigitte.
A rarefação dos jumentos nos campos - no Nordeste brasileiro, no sul da França, mesmo na Palestina - sempre me pareceu uma desgraça. Fizemos tanta coisa juntos, eles e nós - as pirâmides, as minas, as rodas d'água, as catedrais, a agricultura...
O jumento também transformou uma desvantagem em mérito. Ele sofre de um problema de vértebras: tem uma a menos. Mas, como é dono de um espírito dócil, aceitou esse infortúnio, que lhe dá pavor de correr e lhe tira o fôlego quando o dono o faz trotar. Na verdade, ele transforma essa fraqueza em força. Como suas vértebras dorsais são bastante desenvolvidas, seu dorso é saliente e seus rins são fortes. Essa constituição singular se ajusta à sela, de madeira ou de couro.
Todas essa inferioridade e a maneira com que ele teve de assumi-la compuseram o destino do jumento. Ele não é bom para correr e não sabe galopar. Em compensação é ótimo para puxar charrete, mover as rodas que trazem a água para a superfície no deserto, carregar feixes de trigo e sacos de terra e pedra. É bom também para descer ao fundo das minas de carvão, onde, muitas vezes, de tanto viver no escuro, acaba ficando cego.
O jumento participou de todas as aventuras do homem. Suou por nós. Perdeu seu fôlego por nós. Morreu sob nossos golpes. E, quando os engenheiros inventaram o motor de explosão, a moto, o trator e o caminhão, adeus jumento! Adeus, velho servidor! Vamos vendê-lo para a China para que as pessoas o comam. Nós o jogamos como se joga uma roupa esgarçada, uma gilete sem corte. Adeus, velho amigo, mas você não serve para mais nada!
Gosto muito dos jumentos do Nordeste brasileiro. Venho testemunhando sua derrota há 40 anos. E vi esta aberração: motos ruidosas, nauseabundas, perigosas, substituindo jumentos para cercar os rebanhos, em meio a um atroz odor de combustível. Em 1974 fiz uma longa viagem pelo Nordeste do Brasil. Sozinho. Fui de cidade em cidade, ao acaso, segundo meu desejo, em ônibus que rodavam 10, 12 horas por dia. Os jumentos já começavam a desaparecer, mas ainda eram numerosos. Faziam parte da paisagem nordestina. Quando chegava aos vilarejos assolados pela seca, eu ia cumprimentá-los. Eles me lembravam aqueles jumentos que conheci e amei na minha infância, não no Brasil, mas na França, nas montanhas austeras e pedregosas da Provença. Eu falava com os jumentos de João Pessoa ou de Epitácio Pessoa. Temos boas lembranças em comum, os jumentos do Nordeste e eu. Hoje, quando atravesso esses lugares ermos, em meio à barulheira dos caminhões e das motos, procuro por todo o lado as orelhas, as belas orelhas sensíveis, e elas sumiram.
Eu respirava seu odor. Olhava seus grandes olhos melancólicos e era como se um tapete mágico me conduzisse de volta aos tempos felizes da infância. Foi nessas longas noites no Nordeste que compreendi por que tanto amava os jumentos. Do outro lado do mundo, encontrei os mesmos animais, tão bonitos, tão fortes, tão resignados. Como seus congêneres da Provença, os pequenos jumentos do Nordeste se aproximavam de mim e cheiravam minhas mãos. Eles gostavam do meu cheiro, e eu do deles. Certas noites, nesse longo périplo solitário entre Salvador e Natal, Recife e Terezinha, sentia uma certa angústia pelo fato de estar só. Então ia ver os jumentos. Tínhamos este ponto em comum: detesto a solidão, os jumentos, também. Se um jumento está sem companhia, fica infeliz. Entedia-se a ponto de parecer que pode morrer de tédio.
O jumento não é só corajoso e útil: também tem caráter. Apesar de sua cortesia e indulgência com relação às loucuras e vilanias dos homens, jamais transige em questão de princípios. Na Bíblia, uma jumenta impediu que seu senhor, o adivinho Balaam, bloqueasse a passagem do povo de Israel quando este se aproximava da Terra Prometida. Naquele dia, os homens estiveram muito perto do desastre. Se a jumenta não tivesse dado uns bons coices em Balaam, os judeus jamais teriam continuado sua epopeia e isso teria provocado uma grande confusão na Bíblia, na história religiosa e em toda a História. Teríamos que começar tudo do zero. E Deus, como iria se sair dessa?
Em recompensa, o jumento teve o privilégio de aquecer com seu sopro o Menino Jesus na manjedoura. O jumento também teve a honra de servir de montaria para Cristo quando Ele entrou em Jerusalém, antes da Paixão. Jesus ficou muito emocionado e marcou o dorso do jumento com um sinal da cruz. Na Provença nós chamamos de "cruz de Santo André". Fiquei comovido ao encontrar nos jegues do Nordeste o mesmo sinal da cruz.
O jumento é bem considerado pelos deuses. Enquanto os homens o condenam ao insulto, ao desprezo, à pancada e ao trabalho perpétuo, as sociedades religiosas têm consideração com ele. A história santa está repleta de jumentos. A Bíblia o cita 133 vezes, um recorde entre os animais. Em Josué, ficamos sabendo que o jumento foi montado por judeus da mais alta sociedade, príncipes e damas. Cada patriarca tinha seu jumento. Abigail, que vai ao encontro de David, sela seu jumento (Samuel, 25) Zorobabel, depois da Babilônia retorna a Jerusalém montado no dele. Sansão, quando 3 mil filisteus o atacam, usa uma queixada de jumento para revidar e os mata.
O jumento vai do Velho Testamento para o Novo. Jesus escolheu um burrico, não um cavalo, para entrar em Jerusalém. Em Roma, os pagãos ridicularizavam a religião cristã por causa de sua amizade com os jumentos. Um pouco mais tarde, encontramos muitos místicos cristãos no Egito que se entregavam a penitências terríveis: viver sentados na ponta de uma coluna de pedra, numa árvore, quase imersos num pântano ou então se mantendo de tal modo imóveis que os pássaros faziam ninho em suas mãos. Os pagãos se divertem com esses fanáticos. E os chamam de "jumentos".
É verdade que mesmo em países cristãos os jumentos foram às vezes maltratados. Na Espanha, quando Isabel, a Católica, mandava queimar uma feiticeira, esta era amarrada nua num burro para que, à pena de morte, se adicionasse o suplício de partir da vida no dorso de um animal desprezado e obsceno. Na França os professores durante muito tempo colocavam um chapéu de asno na cabeça dos maus alunos. Por toda parte o jumento foi relegado ao desprezo e à injúria. Ao longo da história (salvo nos países do Oriente Médio), ele esteve no mais baixo nível da sociedade. Pior: foi sempre o bode expiatório dos mais humildes, o doméstico dos domésticos, o escravo dos escravos, o proletário dos proletários.
Alguns intelectuais foram em seu socorro. Victor Hugo escreveu, no fim da vida, um imenso poema glorificando o jumento. O grande historiador Michelet sublinhou o papel do burro na história dos homens, e o grande naturalista Buffon defendeu o jumento contra o cavalo. O filósofo da Renascença Giordano Bruno, último homem queimado pela Inquisição, em 1600, fez do jumento um modelo de espírito e erudição. Os sábios que acompanharam Napoleão Bonaparte no Egito, em 1798, montavam jumentos. Quando a tropa foi atacada pelos mamelucos, os oficiais franceses gritaram: "Protejam os jumentos no centro". No geral, pintores e poetas amam o jumento. Os cabalistas judeus descobriram que a palavra "jumento", em hebraico, tem as mesmas letras que a palavra "matéria". E concluíram que o jumento é "o mestre dos segredos do universo". Têm razão. O jumento entende tudo: se é idiota, é idiota como O Idiota de Dostoievski, o príncipe Muichkine - que é genial porque, se não compreende as coisas corriqueiras, compreende, por outro lado, as mais obscuras.
O jumento sabe tudo. Ele não trota nas mesmas paisagens que nós. Apenas aparenta compartilhar nossos caminhos, quando na realidade está em outro lugar, vem de outro lugar, vai para outro lugar. Ele atravessa educadamente nossa geografia sem fazer ruído para não nos perturbar, mas na verdade não caminha no mesmo passo que nós. Somente os poetas compreenderam a nobreza do jumento. Na França, no início do século 20, Francis Jammes escreveu uma oração para eles. É tão bela e luminosa que eu vou citá-la:
Prece para chegar ao Paraíso em Companhia dos Jumentos
Quando for a hora de ir a vosso encontro, meu Deus, fazei com que seja num dia em que o campo esteja brilhando em festa. Pegarei meu bastão e pela grande estrada irei, e direi aos jumentos, meus amigos: sou Francis Jammes e vou para o paraíso, porque não existe inferno na terra do Bom Deus. Eu lhes direi: venham pobres animais queridos, que com um brusco movimento de orelhas se livram das moscas, dos golpes e das abelhas. Que eu apareça diante de Vós entre esses animais que amo tanto porque baixam a cabeça docemente e juntam as pequenas patas de uma maneira tão gentil que dá pena. Meu Deus, fazei com que eu chegue até Vós com esses jumentos. Fazei com que os anjos nos conduzam em paz pelos riachos ensombreados em cujas margens tremulam cerejeiras, e fazei com que nessa morada das almas, sob vossos divinos olhos, eu me assemelhe aos jumentos, cuja humildade e doce pobreza se refletirão na limpidez do amor eterno.
Certamente, com o passar do tempo e dos milênios (ele está entre nós há 5 mil anos) o jumento começa a entender que as coisas não vão muito bem para ele, mas não se revolta. Sua tática é sutil. O cérebro humano não a alcança. O jumento é submisso e glorioso ao mesmo tempo, resignado e irredutível, escravo e soberano, vencido e vencedor. Ele dá cambalhotas nas primaveras onde não já não estamos. Encontrou obstáculos e os contornou. Ele se salvou do tempo. Sobre seus belos cascos, trota nas pradarias onde as horas não soam.
Se o espancamos, ele nos olha com um olhar incrédulo e belo. Não fica com raiva. Tem pena de nós. Não nos culpa, só nos observa. Ele gostaria de nos ajudar a ser menos vingativos. E nos consola de nossas maldades. "Não se preocupe", parece dizer, arreganhando os beiços, "não é sua culpa. Você é assim, mas isso vai passar. É um mau momento, uma má eternidade. Depois, você vai ver, tudo será melhor."
Durante a 1ª Guerra Mundial, em Verdun, inúmeros soldados foram mortos e enterrados. Inúmeros jumentos também foram mortos, mas não foram enterrados. Há alguns anos, um pintor de Auvergne (região montanhosa no centro da França onde há muitos jumentos), Raymond Boissy, manifestou sua indignação. E propôs que um monumento fosse erigido aos mortos, um monumento ao Jumento Desconhecido (como há em Paris o Túmulo do Soldado Desconhecido).
É uma ótima ideia. Aqueles jumentos, o Exército francês os fez vir de barcos do Magreb, do Marrocos, porque os jumentos dessa região são pequenos, dóceis e muito fortes. Eram capazes de transportar 150 quilos de obuses. Rastejavam nas trincheiras levando munição para os soldados que se encontravam em casamatas e fortins. Claro, os alemães descobriram e seus artilheiros bombardearam os ventres dos pequenos jumentos marroquinos. Foi uma carnificina. Aqueles que sobreviveram e retornaram às linhas francesas, contentes de reencontrar seus senhores, estavam feridos. Então foram abatidos. 150 mil jumentos foram mortos em Verdun.
O solo de Verdun está repleto de valas comuns de jumentos. Ali eram jogados os cadáveres desses animais tão gentis, suas pequenas coxas quebradas, as pequenas patas rígidas, seus olhos, tão belos, tão indulgentes, tão resignados. Como não chorar? / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

A epidemia do vício, do site Opinião & Notícia


The Fix. Por Damian Thompson. Collins; 279 páginas; £18.99
Obesa, descontrolada, viciada em jogos, pílulas, pornografia, e apetrechos tecnológicos, a humanidade moderna se depara com tentações para as quais é mal equipada para resistir. Damian Thompson, um jornalista britânico que parou de beber após 14 anos de alcoolismo, produziu um relato informativo e divertido do que ele retrata como uma epidemia do vício.
A sua principal mensagem em The Fix é que os viciados não sofrem de uma doença. Ele argumenta que o comportamento do dependente é essencialmente voluntário: uma desordem cerebral química pode influenciar o dependente a fazer más escolhas, que, apesar da má qualidade, são escolhas. O ambiente também intensifica a tentação: o autor cita a epidemia de vício em heroína entre tropas norte-americanas na guerra do Vietnã. A maioria dos soldados descartou o hábito ao voltar para casa.
O livro – escrito em um estilo ágil que camufla a sua profundidade – presta uma atenção especial à química cerebral. Um conjunto de circuitos mentais diz às pessoas para consumirem o máximo possível: a comida que está aqui hoje pode ter desaparecido amanhã. Outras partes mais sofisticadas permitem que elas se restrinjam. A vida moderna, argumenta Thompson, está confundindo as partes inteligentes e superestimulando as funções mais primitivas que encorajam a perda de controle. A dopamina – o neurotransmissor associado ao desejo – desempenha um papel importante: Thompson a chama de “droga mestra”. Ela contribui para que as pessoas continuem a desejar coisas que já não lhes dão prazer.
As empresas miram em tais fraquezas, utilizando-se de tecnologia alimentícia para criar combinações de gordura, sal e açúcar. Designers de jogos de computadores testam seus produtos para torná-los viciantes.
Ou seja, tanto a necessidade de manipular sentimentos quanto a habilidade para fazê-los cresceram de modo colossal. Inovações produzem vícios baratos, fortes e insalubres fortemente vinculados ao que outrora eram atividades prazerosas ligadas a metas evolucionárias (nutrição, socialização e reprodução). Hoje em dia eles estimulam as pessoas muito além da satisfação de suas necessidades biológicas. Condicionados pela evolução para procurar prazer onde sabemos que podemos encontrá-lo, nos encontramos agora em um ambiente que “nos bombardeia com recompensas de que nossos corpos não precisam e que não ajudam em nada a garantir nossa sobrevivência como espécie”.
Reagir a isso, o autor argumenta, vai requerer que as pessoas recuperem a vigilância que seus ancestrais caçadores-coletores já tiveram em relação a riscos letais. Mas será que as pessoas estão dispostas a abandonar os seus vícios?