quinta-feira, 29 de julho de 2010

Responsabilidade pesa 1,7 kg

Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
"Um político de peso, capaz de opiniões abrasivas, quando questionado sobre seus atos, esquiva-se com argumentos escorregadios. Incapaz de sentir a pressão da culpa sobre a alma, dorme um sono leve."
Você deve estar imaginando a que político estou me referindo, mas talvez não tenha percebido que o parágrafo acima contém cinco exemplos do uso de termos relacionados ao sentido do tato (peso, abrasivo, escorregadio, pressão e leve) para qualificar objetos que jamais percebemos por meio desse sentido (político, opiniões, Paulo, culpa e sono).
A associação de termos relacionados aos sentidos para qualificar objetos não relacionados ao sentido em questão ocorre em todas as línguas. Estudos quantitativos demonstraram que o tato é o sentido em que esse fenômeno de transferência é mais frequente, apesar de muitas vezes o sentido da visão ("uma mente brilhante") e o do olfato ("aquele acordo fede") também fornecerem qualificadores para objetos não relacionados.
Muitos linguistas e psicólogos acreditam que esse fenômeno se deve ao fato de o tato ser o primeiro sentido utilizado pela criança para perceber o mundo exterior. Mesmo antes de abrir os olhos, o recém-nascido sente o bico do peito na boca, prova o gosto do leite e se conforta com o cheiro e o abraço da mãe. Esses cientistas acreditam que mais tarde, durante o desenvolvimento da linguagem, a mente humana transfere para objetos abstratos muitas das qualificações derivadas dos sentidos. E ao longo da história da humanidade, em todas as culturas, essas associações se perpetuam em expressões verbais.
Agora, um grupo de cientistas deu um passo além e investigou se essa associação entre percepções táteis e objetos não relacionados influencia o comportamento e a capacidade de julgamento de pessoas adultas. O que eles testaram é se a presença de um estímulo tátil afeta nossa capacidade de decisão.
No primeiro estudo, pediram para 50 voluntários avaliarem o currículo de um candidato a um emprego hipotético. Todos os voluntários receberam o mesmo currículo, com o mesmo texto, impresso em folhas de papel idênticas, e tiveram o mesmo tempo para fazer sua avaliação. A diferença é que metade recebeu o currículo em uma prancheta leve, que pesava aproximadamente 300 gramas, e a outra metade, em uma prancheta pesada, de mais de 2 quilos. Uma diferença de 1 quilo e 700 gramas. Os voluntários deveriam avaliar, em uma escala de 0 a 10, se o candidato era adequado à vaga, se possuía os requisitos necessários e assim por diante.
Peso da linguagem. O resultado é impressionante. Os avaliadores que receberam a prancheta pesada deram notas maiores para as qualidades do candidato que, na língua inglesa, possuem expressões verbais associadas ao peso (capacidade intelectual e responsabilidade). Por outro lado, na parte da avaliação que perguntava sobre a capacidade de socialização do candidato, que na língua inglesa não possui expressões relacionadas ao peso, a avaliação pelo grupo de pessoas com as pranchetas pesadas ou leves foi idêntica.
Além disso, os cientistas pediram para que os voluntários avaliassem como se sentiam em relação à responsabilidade de avaliar um candidato a partir de apenas um currículo. Os que haviam recebido o currículo em pranchetas pesadas avaliaram sua própria responsabilidade como muito maior quando comparada à percepção dos que receberam as pranchetas leves. Ou seja, "sentiram o peso da responsabilidade".
Outros cinco experimentos, que testaram se a manipulação de objetos rugosos ou lisos e duros ou moles afeta o julgamento de pessoas adultas, confirmou que nossa capacidade de julgamento e decisão é realmente afetada pelo estímulo tátil ao qual estamos submetidos. Esse experimento demonstra claramente que nossa capacidade de tomar decisões racionais é aparente e limitada.
Nosso cérebro, o aparato que processa informações e decide, está longe de ser isento de influências que datam de nossa infância. Tudo indica que nossa história tem um peso muito real sobre nossa capacidade de julgamento. Freud deve estar sorrindo no túmulo.
BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: INCIDENTAL HAPTIC SENSATIONS INFLUENCE SOCIAL JUDGMENTS AND DECISIONS. SCIENCE, VOL. 328, PÁG. 1.712, 2010 


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Falta cabeça à conservação

Marcos Sá Corrêa - O Estado de S.Paulo  
23 de julho de 2010 | 0h 00
Parem a motosserras. Vem aí o mapa-múndi das florestas, lembrando que as árvores mais altas da Terra estão espetadas na Costa Oeste dos EUA e no Sudeste Asiático. As da Amazônia mal batem no peito dessas gigantes.
Não é bem esse o planeta que o governo brasileiro desenha quando descreve para a opinião pública o estado da Terra. Nos outros países nem existem mais árvores, não é mesmo? Pena que o mapa seja o tipo da informação que passa de fininho pelo noticiário, enterra-se nos anais acadêmicos e lá desaparece. Aí, ligam-se as motosserras.
O que mais poderia fazer com essa informação quem vive num tempo em que a ciência empurra sem parar a natureza para além do senso comum? Onde havia monstros, prodígios e portentos demarcando os limites do mundo conhecido na cartografia medieval, agora há biomas, efeitos antrópicos e aquecimento global disputando espaço com velhas lendas.
E não será só com notícia ligeira que se pisa em terra incógnita. Falta munição em português para desbravá-la, porque os livros nos quais os naturalistas aprenderam a traduzir para leigos os segredos da realidade saem, geralmente, em inglês. E em inglês permanecem. Só em inglês dá para ler de enfiada e com prazer a história da complicação em que se meteu o biólogo Bernd Heinrich, comprando no Estado do Maine, em 1977, para cultivar uma floresta, terras que fazendas antigas e madeireiras recentes haviam deixado no osso.
Restaurá-la só com salário de professor era, de cara, um projeto falido. Heinrich decidiu reflorestar a propriedade com o dinheiro e a técnica da exploração comercial de madeira. Tiradas num intervalo de três décadas, fotos aéreas do terreno comprovam que ele acertou a mão. Porque essa mão teve cabeça para fazer em cada metro quadrado de suas colinas um considerável investimento de curiosidade e pesquisa. O trabalho lhe rendeu, fora o prazer de morar numa clareira onde hoje alces e ursos vêm comer maçãs, dúzias de livros cotados pela crítica como obras-primas da divulgação científica. E alguns sucessos de livraria.
Como autor, Heinrich pode ser tudo, menos sedentário. Costuma zanzar por suas matas a qualquer hora do dia e da noite, como se estivesse em casa. Controla a cada estação a chegada e a partida dos pássaros, anfíbios e insetos. Sobe em pinheiros com lápis e papel na mão, para rascunhar, lá do último galho, vistas panorâmicas que acompanham a evolução da paisagem. Aponta, pessoalmente, as árvores condenadas às serrarias, para que outras retomem o território que originalmente lhes cabia.
Sua floresta se tornou um modelo vivo de ciência aplicada à conservação. Ele costuma usá-la em aulas de campo. E suas aulas soam convincentes, porque anos atrás um ex-aluno desenganado lhe pediu para deixar seu corpo apodrecer ao relento na mata (o que Heinrich recusou), acreditando que assim chegaria diretamente à única vida após a morte que se pode conferir molécula por molécula.
Não há assunto obscuro e abstrato que Heinrich não torne claro e concreto em duas ou três páginas. A conversa fiada sobre sequestro de carbono, por exemplo. Ela paira no ar há tanto tempo que parece incapaz de pegar na terra. Heinrich a materializa num galho que cresce diante de sua janela, absorvendo por segundo em cada célula 4,6 milhões de moléculas de dióxido de carbono, possivelmente expelidos por "um tronco em decomposição na Amazônia, um carro nas avenidas de Los Angeles, uma usina a carvão no Utah, um pássaro na Indonésia e um babuíno na Tanzânia".
Portanto, "cada célula de madeira em cada árvore" de sua propriedade é um permanente "dá-e-toma com o resto do mundo". Dito assim, parece simples, não? Pois é o mesmo cálculo que o tal mapa-múndi da massa florestal pretende converter à escala planetária. Para que ninguém mais possa dizer que não tem nada a ver com isso. 


Deus é brasileiro (e nasceu em Pernambuco)

2/07/2010 - 01h58

Por Sérgio Malbergier, Folha de S. Paulo


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Deus criou o mundo em seis dias, segundo a Bíblia. Lula criou o Brasil em oito anos, segundo ele mesmo.
O que acontecerá ao país agora que seu autoungido criador deixa a cena não parece incomodar muito o ainda mais sensível dos termômetros: o mercado financeiro.
Ninguém parece estar dando muita bola ao que os candidatos à Presidência vêm dizendo ou disseram sobre a economia. Nem mesmo a possibilidade cada vez mais real de o Partido dos Trabalhadores se tornar uma força muito maior no Congresso parece incomodar.
E por que incomodaria? Quem vai tirar o país do seu rumo agora que o encontramos, ufa!, depois de termos tentado todas as outras (im)possibilidades?
O Brasil está em lua de mel com o capitalismo, e se lambuza mesmo quem xinga o mercado.
Por isso esse casamento veio para durar. Não será o próximo nem o outro governo que mudará o tripé de câmbio flutuante, limites fiscais e inflação baixa/BC independente.
As dezenas de milhões de emergentes brasileiros, que só agora ascendem à cidadania do consumo, não vão querer ouvir de socialismo, economia dirigida, mudança do jogo.
O jogo tem que continuar até porque falta muito a jogar, principalmente melhorar o ambiente de negócios, com menos impostos, menos burocracia, menos protecionismo: para que o espírito animal do trabalhador brasileiro realize todo o seu potencial.
Desfrutamos de um bônus demográfico sem precedentes, com taxas de natalidade declinantes, mais adultos em idade produtiva e menos pessoas por lar. Esse conjunto eleva a renda doméstica e a capacidade produtiva do país.
Num mundo que passará dos atuais 6,5 bilhões de habitantes para 9,2 bilhões em 40 anos, nossa enorme e singular capacidade de produzir energia , minérios e alimentos nos torna um gigante pela própria natureza. Nosso mercado interno que desabrocha é outro vetor de prosperidade.
Seria preciso muita cegueira para tirar o Brasil do seu rumo.
A aprovação terrena do Criador, quer dizer, do Lula é mais do que a aprovação à sua figura, apesar da insistência do cada vez mais desinibido culto à sua personalidade.
A aprovação recorde é antes de tudo a aprovação da estabilidade econômica do modelo capitalista, em torno do qual Lula fechou o consenso nacional.
Este é o maior seguro do país contra os aventureiros. Por isso os mercados acordam tranqüilos.