domingo, 2 de novembro de 2025

Brasil zera importação de mercúrio e monta operação para levar resíduos para Alemanha, FSP

 João Gabriel

Brasília

O Brasil vai zerar a importação de mercúrio neste ano e desativar as últimas fábricas do país que compram o material. Para evitar que os rejeitos sejam desviados para o garimpo ilegal de ouro, foi montada uma operação para descartá-los na Alemanha.

A decisão é uma das entregas que o país leva para a Convenção de Minamata, que trata do combate aos efeitos nocivos que este metal pesado tem para pessoas e para o meio ambiente em geral. O evento começa nesta segunda-feira (3) na Suíça.

Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami em 2023 - Alan Chaves - 24.fev.23/AFP

Historicamente o mercúrio tem diversas aplicações, como lâmpadas, termômetros, cosméticos, amálgamas dentárias e produção de cloro e soda cáustica, mas, com a modernização da indústria, tem caído em desuso.

No Brasil, apenas as últimas duas atividades usam o metal atualmente, e o governo Lula (PT) atua para que isso tenha fim até 2030.

Em 2025, não houve importação autorizada de mercúrio para o Brasil —a indústria de amálgamas dentárias já compra o produto pronto.

A partir do ano que vem, começa o processo de descomissionamento das últimas três fábricas —todas de cloro— que trabalham com o elemento em estado puro. O fim do uso deste metal nessa indústria é um dos compromissos da Convenção de Minamata.

O mercúrio também é um insumo essencial para o garimpo ilegal de ouro. Algumas das formas de comercialização do material para essa finalidade é pelo desvio de lotes que entram no país legalmente ou com notas fiscais fraudadas de compras no exterior —possibilidades que deixam de existir com o fim das importações.

"Ao encerrar o uso industrial e restringir as entradas formais do produto, o Brasil fortalece o controle sobre o comércio e o uso do mercúrio, dificultando o abastecimento do mercado ilegal, reduzindo a contaminação ambiental e cumprindo compromissos internacionais assumidos no âmbito da convenção", afirma o secretário Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Adalberto Maluf.

A atividade criminosa explodiu durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), impulsionando o desmatamento dentro de terras indígenas e a destruição e contaminação dos rios.

O caso mais notório foi o do território Yanomami, que desde 2023 passa por uma megaoperação para desintrusão de invasores.

O mercúrio é usado para a separação do ouro e acaba se misturando com a água dos rios e então contamiona peixes, fonte primária de alimentação dos indígenas que, ao consumirem a comida, ingerem também este elemento.

Por ser um metal pesado, ele não é expelido nem neutralizado em nenhuma etapa deste processo, e não há cura depois que ele entra no organismo.

Seus efeitos são sentidos mesmo com pouca ingestão e aumentam conforme a quantidade. Um estudo da Fiocruz na Terra Indígena Yanomami mostrou que ele causa graves deficiências cognitivas em bebês e fetos —uma vez que atravessa a placenta de mães gestantes.

Em adultos causa perda de visão, alteração da audição, dificuldade na coordenação motora, diminuição da sensibilidade e problemas cardiovasculares, com aumento no risco de infarto do miocárdio e hipertensão.

Desde o início de 2023, foram mais de 7.000 operações contra o garimpo realizadas na Terra Indígena Yanomami e cerca de R$ 12 milhões em multas ambientais aplicadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente).

Para calcular o valor dessas autuações, o instituto utiliza uma calculadora criada pelo CSF (sigla em inglês para o Fundo de Conservação Estratégica).

Ela contabiliza os três principais danos causados pelo desmatamento —o desmatamento, a degradação dos rios e os efeitos do mercúrio sobre o meio ambiente e as pessoas atingidas — e ajusta o valor a partir de características como tamanho da população afetada, quantidade de peixes contaminados consumidos e o custo de recuperação da área.

Na quinta-feira (30), a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) divulgou um novo relatório sobre o contrabando de mercúrio no Brasil.

"As evidências coletadas sugerem que o mercúrio utilizado na amazônia brasileira tem origem em México, China, Rússia e Tajiquistão, trazido a países vizinhos por meios lícitos e ilícitos", diz o documento.

A partir de informações coletadas sobretudo em apreensões, a agência conclui que o metal entra no Brasil seguindo majoritariamente as rotas do ouro ilegal, por Bolívia e Guiana —em menor escala, passa também pelas fronteiras com Colômbia, Peru e Guiana.

"O valor do quilo de mercúrio em zonas próximas aos garimpos varia entre R$ 3.600 e R$ 6.000", diz a análise. Ele é transportado em garrafas PET, embalagens plásticas ou botijões de gás e vendido na internet e por meio de grupos em aplicativos de mensagem.

Além do contrabando, outra forma de obtenção do mercúrio para os garimpos é por meio de resíduos —por exemplo, de lâmpadas.

No processo de desativação das três fábricas de cloro, o governo brasileiro fechou uma parceria com a Alemanha para que os rejeitos sejam armazenados no país europeu —esse material ainda contém o metal pesado e precisa ser selado para não contaminar o meio ambiente. A ideia é evitar que criminosos possam roubá-lo para utilizá-lo na exploração ilegal do ouro.

"O procedimento inclui a remoção e estabilização do metal, a descontaminação das instalações, o tratamento de efluentes e resíduos e a destinação ambientalmente adequada dos estoques remanescentes. O processo também prevê o monitoramento ambiental e médico-ocupacional e a comunicação com órgãos competentes e comunidades do entorno", diz Maluf.

Nos últimos anos, a quantidade de mercúrio importado para o Brasil caiu drasticamente. Foram 27,5 toneladas que entraram no país legalmente em 2017, quantidade que subiu para quase 50 mil toneladas em 2019, e a, partir de então, começou a declinar.

Passou a 15 mil toneladas em 2022 e12 mil toneladas em 2023 e 2024. Em 2025, ainda não houve registro. Japão, Suíça, Estados Unidos, Índia, Japão, México e Reino Unido são os países que forneceram mercúrio para o Brasil nos últimos dez anos.

Marcus André Melo - Argentina: quando o fracasso sustenta a identidade política, FSP

 

É lugar-comum afirmar que o Brasil não é para amadores. O que dizer, então, da Argentina? Uma das frases mais célebres sobre o país — ou sobre sua tragédia— é atribuída a Simon Kuznets, prêmio Nobel de Economia em 1971: "Existem quatro tipos de países no mundo: desenvolvidos, subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina".

Turistas visitam a Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, o palácio presidencial, em Buenos Aires - Luis Robayo - 27.out.25/AFP

A eleição de um libertário em um país marcado pelo intervencionismo estatal e pela instabilidade fiscal não deveria surpreender. Situações de crises recorrentes tendem a produzir respostas políticas radicais. O feito, no entanto, não é apenas individual. O partido La Libertad Avanza (LLA) saltou de 14% para 41% das cadeiras na Câmara. Três fatores foram decisivos: a mais baixa taxa de comparecimento às urnas em quatro décadas (67%), apesar do voto obrigatório; o swap cambial de US$ 20 bilhões (R$ 107 bilhões) de Trump; e a promessa do presidente dos EUA de descontinuar apoio se Milei viesse a perder. O peronismo foi amplamente derrotado. Como alternativa era ainda pior.

A trajetória do declínio argentino é inseparável da história do peronismo. Juan Domingo Perón foi ministro e vice-presidente durante o regime militar (1943–1945), eleito presidente em 1946, reeleito em 1951 e deposto em 1955, ele retornou ao poder em 1973, falecendo em 1974. A radicalidade de seu movimento expressou-se na rejeição à democracia representativa e na mobilização social agressiva. Não por acaso, Seymour Martin Lipset classificou o peronismo como "fascismo de esquerda" em "Political Man: The Social Bases of Politics" (1960).

O peronismo estruturou de modo duradouro a política argentina e seus efeitos ainda se refletem nos resultados eleitorais recentes, como destaca Andrés Malamud. A geografia do voto em Milei revela padrões consistentes com essa trajetória histórica.

Após a redemocratização de 1983, peronistas e radicais alternaram-se no poder, período que se iniciou com Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical (UCR). Nas últimas duas décadas, entretanto, essa lógica foi substituída pela ascensão de novos partidos. Como sintetiza Malamud, "o que muda é a ideologia interna do peronismo e o partido externo do não peronismo. É este último que mantém uma identidade que muda de instrumento [partidário] ao longo do tempo".

Enquanto o peronismo se deslocou radicalmente para a esquerda sob os Kirchners, o campo não peronista viu surgir alternativas à UCR, em processo comparável ao declínio do PSDB no Brasil —primeiro com o PRO de Mauricio Macri e, agora, com Milei. Isso explica as vitórias recentes em redutos historicamente ligados à UCR, já que as bases sociais do mileísmo se concentram no campo não peronista, com exceção parcial do eleitorado jovem.

A imagem de Malamud é certeira: "o peronismo continua existindo porque fracassou; o radicalismo deixou de existir porque teve sucesso." Enquanto os radicais desempenharam papel decisivo na redemocratização e na consolidação institucional, os peronistas mantêm um voto essencialmente identitário, resistente apesar dos reiterados fracassos.

Milei virou o jogo e ganhou tempo: conta com quórum para veto presidencial, base ampla e —seu calcanhar de aquiles— recursos para negociar com governadores.