terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O dia em que Canhoto da Paraíba colocou Andrés Segovia no banco

BRAVA GENTE BRASILEIRA
por Miguel Nicolelis  in revista Brasileiros - dez/10


Em tempos normais, eu já não aconselharia ninguém vindo do Brasil a pousar no Aeroporto Internacional Dulles, de Washington, capital dos Estados Unidos, antes das 6 horas da manhã. Na quarta-feira chuvosa de 3 de novembro de 2010, nem pensar. Nas circunstâncias daquela madrugada, entrar em contato com a atual realidade do combalido império do norte sem a preparação adequada, tinha tudo para ser uma experiência traumatizante, capaz de causar nos menos avisados um estado de completa estupefação. Nesse momento, cabe um parêntese. Enquanto os viajantes brasileiros tinham deixado há poucas horas um país tropical ensolarado e radiante, comemorando o resultado alvissareiro de um dos maiores exercícios democráticos da sua história, os seus anfitriões matutinos acabavam de acordar para a dura realidade de um outro pleito. Depois da luta fratricida travada nas trincheiras da desinformação, ignorância e preconceito, os americanos tinham testemunhado, na noite anterior, mais um passo decisivo rumo à desintegração política, econômica e social, que, aparentemente, infecta o proverbial calcanhar de Aquiles de todos os impérios metidos a besta.

Rotineiramente mal-humorados, os oficias da imigração americana pareciam não acreditar que o tratamento para a sua ressaca eleitoral seria processar um Boeing 777 inteiro, cheio de brasileiros alegres e barulhentos, egressos dos agora felizes trópicos. O Brasil, certamente, está na moda, mas a moda ainda não pegou nos famosos guichês do aeroporto Dulles. Ah, como sofreram, naquela manhã cheia de contrastes e ironias históricas, aqueles incautos oficiais da lei, ordem, família e propriedade, na sua missão ingrata (e há muito perdida) de preservar a primeira linha de defesa do famoso, e já tão gasto, "American Way of Life"! Mais que eles, também nós, os passageiros, sofremos com a lentidão, soberba e a incompetência que, sejamos honestos, estendia-se democraticamente a nativos e alienígenas.

Folheando as páginas de passaportes impecáveis, muitos ainda completamente virgens, reproduzindo os mesmos rostos que, ao vivo, comprovavam o rumor de ser o Brasil um dos poucos rincões do planeta onde ainda é possível estampar o otimismo e a alegria, além de uma pequena dose de sarcasmo e ironia, como parte do seu cartão de visita, meus amigos da imigração (passo por lá tão frequentemente que alguns já sabem se o Palmeiras ganhou ou não, pela expressão do meu rosto) pareciam sonhar com emprego pleno, seguro saúde nacional, mais Bolsa Família, reservas estuporantes de petróleo, crescimento da economia de 7% e cantos de passarinhos que gorjeiam por aí, isso mesmo, onde você me lê nesse momento, prezado leitor, mas que há muito já decidiram emigrar de lá, onde estavam a sofrer aqueles oficiais sonolentos.

Passada essa barreira, decidi me aboletar na modesta área de espera de um dos portões de embarque e, enquanto minha conexão para Boston não chegava, aproveitei para usar meu laptop e ouvir música da terrinha. A saudade, como os senhores e senhoras podem imaginar, já batia forte. Nessa hora proibitiva para neurocientistas, poucos outros heróis de aeroporto estavam por perto. Ainda assim, sentou-se a meu lado um americano simpático, com cara de professor de Economia da Harvard. Estava eu a curtir o meu som tropical, quando de repente ao mover-me para tentar retirar um livro da mala, o meu fone de ouvido se soltou do computador e o saguão inteiro, com todos os seus gatos pingados, passou a desfrutar de um solo de violão sem igual desse lado da Via Láctea. Sorridente e solícito, o meu anônimo companheiro de espera matutina, não teve dúvida e arriscou um quebra gelo típico de economista neoliberal:

- Que maravilha! Andrés Segovia sempre me fascina.

- Não é Segovia não, meu senhor. - Já fui logo pondo um John Maynard Keynes na sopa do moço, em homenagem a meu grande amigo alviverde, presidente Luiz Gonzaga Belluzzo.

- Trata-se de um quase homônimo. Canhoto da Paraíba é o seu nome do violeiro.

- Mas não pode ser! Soa perfeito. Música dos deuses, como só o incomparável Segovia, de Granada, poderia produzir. Mas em que conservatório estudou esse senhor? Deve ter sido pelo menos aluno do grande mestre, não foi não?

- Acho pouco provável, a não ser que o grande Segovia tivesse aberto uma filial, na sacristia da matriz de Princesa Isabel, sertão da Paraíba, terra natal do menino Canhoto.

- Mas que fenômeno. Posso escutar mais um pouco?

- Como não, abolete-se e desfrute. Sinta-se em casa. Mestre Canhoto ficaria muito lisonjeado com seu interesse por seu violão.

- Paraíba, onde fica isso?

- Nordeste brasileiro, embaixo do Rio Grande do Norte, em cima de Pernambuco.

- Mas deve ser um paraíso essa tal Paraíba, para dar à luz um gênio musical como esse. Nunca ouvi nada igual.

- Realmente, é um paraíso. Lindo de fazer olho marejar. Mas para desfrutar dessa boniteza toda, carece de ter um outro tipo de olho, um outro tipo de ouvido. E definitivamente, precisa ter dedos muito ligeiros, como Canhoto tinha, para contar estórias que vem de lá. O senhor reparou que Canhoto tocava o violão com a mão esquerda e sem trocar a ordem das cordas?

- Não, não é possível! Ainda mais essa? Inacreditável!

- Pois é, meu amigo, o sertão nordestino não produz qualquer caboclo, não. Como toda forma de vida por lá padece muito, aqueles que conseguem vingar são pessoas valentes, destemidas e difíceis de dobrar. Quando menino, bem que tentaram forçar o menino Canhoto a aprender a tocar com a mão direita. Teimoso que nem um pau de Jurema, o moleque não se vergou. Escondido, aprendeu por si só uma forma de extrair o bemol e dó sustenido de ponta cabeça. Isso que é amor pela música. O resto é conversa. E não é que o truque funcionou? Garanto que nem o seu amigo Segovia aprontava uma dessas. Lá no sertão bravo do Nordeste, para vingar de verdade, precisa fazer que nem flor de cacto.

- E cacto lá tem flor? Que história de argentino é essa?

- Se tem, doutor. As danadas ficam escondidas por um bom tempo, protegidas por aqueles espinhos afiados, do tamanho de um prego. Aí, quando começa qualquer chuva miúda, coisa rara no sertão, elas florescem mais rápido do que o Canhoto compunha um choro. Abrem todas as bocas como se fosse um coral silencioso a repetir: "Quem disse que cacto não tem o direito de ser flor?". E assim, arregaladas, elas aproveitam cada gotinha doce que lhe permita sobreviver mais um dia, até que outra nuvem bendita, perdida naquele céu azulado, decida a chorar de tanta tristeza de ver aquela terra torrada, a caatinga queimada, e a boiada definhando... Canhoto era como flor de cacto. Florescer a qualquer custo, era a razão que lhe fazia dedilhar seu violão invertido até cansar, mesmo quando, lá na sacristia da matriz da valorosa Princesa Isabel, não havia ninguém para escutar quando ele abria a boca, que nem flor, e todo frajola se punha a cantar.

- Coisa muito interessante esse seu país tropical. Brasil, quem diria, o futuro finalmente chegou para vocês. Justo no momento que o nosso parece ter acabado. Aqui no Norte, ninguém acredita no que aconteceu com vocês. Agora, até lá em Harvard eu já vi gente dizer: "Que Obama que nada, manda chamar o tal de Lula, quem sabe ele consegue dar um jeito aqui em cima também".

Logo a seguir, embarcamos. Meu novo amigo fez questão de sentar-se a meu lado no avião novo em folha. Depois que ele estava bem confortável, pronto para começar a ler o seu Wall Street Journal, eu fiz questão de lhe apontar para o folheto de segurança da aeronave. Nele, podia-se ler claramente: "Embraer, made in Brazil!". Meu amigo murchou, emudeceu e não falou mais comigo. Constrangido, nem tive coragem de lhe dar a notícia que foi Santos Dumont que inventou o voo controlado, não os irmãos Wright.

Deu até dó. Realmente, aquele não era o dia dos gringos!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Peruas de natal

Por Fernando de Barros e Silva, in Opinião FSP 20/12/2010

SÃO PAULO - Chama atenção, nos estacionamentos dos 
shoppings paulistanos, abarrotados nesta época, a quantidade de carrões,
 daqueles que mal cabem numa vaga normal. Estão ali, 
exibindo a sua força, com seus traseiros enormes, apertados 
como um brutamontes numa cadeira de avião. São Paulo está cheia 
desses jipões high tec, dessas superperuas modernosas.
São conduzidas frequentemente por mocinhas, 
ou jovens senhoras esquálidas e assustadiças, 
numa esdrúxula combinação de fragilidade e truculência, 
de poder e desamparo. Não se sabe se representam 
a realização de um sonho ou antes a proteção de um pesadelo. 
Sonho de consumo e pesadelo de viver nesta cidade.
 É quase impossível não enxergar esses carros 
como versões civis dos blindados de guerra.
Um amigo que morou em Londres conta que o governo 
está patrocinando a isenção do IPVA local para carros pequenos ou 
movidos a eletricidade. Lá o Estado faz o que pode 
para dificultar a circulação de veículos. Há pedágio urbano
 e as pessoas só podem estacionar sem custos 
em seus próprios bairros. A contrapartida é um transporte 
público que funciona. Mais ou menos o oposto do que temos 
por aqui.
A tara pelas superperuas é o sintoma mais flagrante 
de nossa opção histórica pelo transporte individual. 
Ela está nos levando ao limite da irracionalidade. 
Cada carro, em São Paulo -de uma frota de quase 6 milhões- 
carrega, em média, menos de 1,5 passageiro. Já o sistema público
 vive superlotado e ainda é muito precário. Acordamos muito tarde 
para a importância do metrô, e as obras de expansão da rede vão
 a passo de tartaruga.
Há pouquíssimas restrições ao uso do carro em São Paulo. 
Temos, isso sim, uma indústria avançada de multas de trânsito 
(cerca de 600 mil por mês na capital) 
e uma rede de estacionamentos privados faturando loucuras. 
O carro é tão inviável quanto lucrativo. Por isso temos tantos carrões 
e nenhuma política de transporte digna do nome.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

São Paulo tem 290 mil imóveis sem moradores, diz IBGE


07 de dezembro de 2010 | 11h 34
    - Agência Estado
O número de domicílios vagos na cidade de São Paulo seria suficiente para atender toda a população paulistana que vive hoje em áreas de risco, cerca de 130 mil famílias. Há na capital paulista cerca de 290 mil imóveis que não são habitados, segundo dados preliminares do Censo 2010 divulgados ontem. O déficit habitacional, no entanto, é bem maior - são 712 mil famílias, incluindo habitações irregulares ou precárias, como favelas e cortiços.
Os recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) encontraram 3,9 milhões de domicílios residenciais na capital, onde vivem 11,2 milhões de pessoas. "Foram contabilizadas cerca de 107 mil casas fechadas, que são aquelas em que alguém vive lá e não foi encontrado para responder ao questionário, mesmo após exaustivas tentativas", diz a coordenadora técnica do Censo 2010, Rosemary Utida. Já as 290 mil residências classificadas como vazias não têm moradores.
O Censo de 2000 já mostrava que a capital tinha mais casas vazias do que gente precisando de um lugar para morar, segundo a urbanista Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). "Em 2000, tínhamos cerca de 420 mil domicílios vagos para um déficit de pouco mais de 203 mil moradias. A oferta de casas vazias era quase o dobro", afirma Raquel.
Moradia popular
A relatora da ONU avalia que, mesmo que parte desses imóveis precisasse passar por reforma antes de ser destinada à moradia popular, seria possível, pelo menos, reduzir o número de sem-teto. Outros especialistas discordam. "Esses imóveis vagos, mesmo que sejam reformados, não seriam destinados para habitação popular, não seriam para essa faixa da população, mas para renda mais alta", diz a arquiteta Heloísa Proença, ex-secretária de Planejamento Urbano da Prefeitura.
O secretário municipal de Habitação, Ricardo Pereira Leite, afirma que os imóveis vazios se devem a "um fenômeno que os urbanistas chamam de vacância de equilíbrio". "Quando você se muda, seu imóvel antigo está vazio, e o novo também. No Brasil, urbanistas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) estimam que a vacância de equilíbrio deve ser em torno de 8%. Se for analisar, os 290 mil imóveis vão dar 7,9% do total de domicílios da capital. Em Nova York, uma cidade em que todo mundo quer morar, essa taxa é de 6%", diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo. 


quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O lixo mais rápido da Europa


Barcelona tem 113 km de tubulações por onde o lixo é transportado a mais de 70 km por hora para ser reciclado ou tratado

24 de novembro de 2010 | 12h 
Gustavo Bonfiglioli - Especial para O Estado
Logo abaixo das ruas de Barcelona, existe uma outra malha de tráfego. A uma profundidade de 5 metros, o lixo de casas, escritórios e até hospitais da capital catalã viaja a uma velocidade de cerca de 70 quilômetros por hora por meio de 113 km de tubulações, rede a vácuo que literalmente suga os resíduos produzidos pela população. Todas as vias conduzem aos mesmos destinos, centrais de armazenamento onde o material é processado, estocado em contêineres e finalmente levado a estações de reciclagem ou de incineração.
A chamada coleta pneumática, desenvolvida pela empresa sueca Envac, transformou a gestão de resíduos de Barcelona desde que foi adotada, no início dos anos 90. Hoje a cidade tem 30% do lixo coletado em oito pontos. Cada uma dessas malhas subterrâneas é independente, conectada por dutos a uma central específica. Pode parecer futurista demais, mas existem 600 redes semelhantes espalhadas por 150 cidades de todo o planeta.
As vantagens ambientais são muitas: o fim dos caminhões de lixo, a diminuição das pilhas de sacos nas ruas e o estímulo à coleta seletiva, já que cada tipo de resíduo – reciclável, não-reciclável e orgânico – é lançado na rede subterrânea separadamente e vai para contêineres próprios.
"A ausência de caminhões de lixo evita odores, acúmulo de lixo e melhora o tráfego. Além das vantagens ambientais, o sistema proporciona um melhor aproveitamento do espaço urbano”, afirma Carlos Vazquez, chefe do Departamento de Gestão de Resíduos da prefeitura local. 
O bairro de Lesseps, no distrito de Gràcia, adotou a coleta a vácuo recentemente, em 2009. O presidente da associação de moradores, Josep Maria Flotats, é um dos entusiastas do sistema, que atende 5,6 mil pessoas em Lesseps. “O bairro está mais bonito, limpo e sem odores. Não há mais acúmulo de lixo pelas ruas à espera dos caminhões de coleta, cuja ausência também tornou o bairro menos barulhento”, conta o barbeiro de 65 anos, que organizou uma visita à central de coleta para os moradores no fim do ano passado. “É importante mostrar à população para onde de fato está indo o lixo que ela produz. Todos ficaram satisfeitos.” 
O vice-presidente da Envac Iberia, Albert Mateu, que administra os sistemas na Espanha e em Portugal, afirma que a coleta a vácuo deve cobrir 70% de Barcelona até 2018, ano em que a empresa espera concluir as outras redes de coleta projetadas para a cidade. “Infelizmente, não é possível chegar a 100% por conta de alguns bairros com pequenas colinas e irregularidades no terreno, que inviabilizam a instalação dos dutos”, explica.
Barcelona instalou o primeiro sistema de coleta subterrânea para os Jogos Olímpicos de 1992. O sistema criado para a vila olímpica construída com tecnologias sustentáveis no bairro Poblenou, a noroeste da cidade, atende ainda hoje a 4,4 mil residências. O exemplo da vila deu origem às outras sete redes de coleta, que, 18 anos depois, beneficiam aproximadamente 324 mil moradores.

Eficiente e caro
Segundo Mateu, a instalação da Envac tem quatro grandes turbinas que evitam obstruções na tubulação. Quando ocorrem, os problemas são logo identificados por uma central computadorizada que monitora todos os trajetos. “No caso de entupimento, acionamos as turbinas. Com o ganho de poder de sucção, em 90% dos casos desobstruímos o cano.” Nas demais emergências, o problema é resolvido manualmente.
O sistema é eficiente, mas não barato. Já foram investidos 156 milhões de euros em Barcelona. A instalação de uma rede capaz de atender a 18 mil famílias custa, em média, 50 milhões de euros.
Vasquez explica que o financiamento é feito de duas formas. Em áreas de urbanização nova ou recente, a iniciativa privada banca o equivalente a 57% do custo. Em áreas urbanas já consolidadas, o financiamento público chega a 92% do total. “O investimento público também vem de fundos (da União Europeia).” 
De acordo com Fábio Colella, gerente comercial da Envac no Brasil, o sistema diminui o custo da coleta entre 30% e 40%. “O investimento é alto, mas compensado a longo prazo.”

Apesar de parecer inovador, o recolhimento subterrâneo de lixo a vácuo existe desde 1961, quando foi instalado para atender a um hospital na cidade sueca de Sollefteå. Desde então, começou a ser aplicado em outras partes do país, mas só ganhou novos mercados na Europa a partir dos anos 90. “Acredito que o sistema ganhou visibilidade quando a gestão das cidades passou a ser pensada sob um ponto de vista sustentável”, afirma Colella.