domingo, 2 de novembro de 2025

Marcus André Melo - Argentina: quando o fracasso sustenta a identidade política, FSP

 

É lugar-comum afirmar que o Brasil não é para amadores. O que dizer, então, da Argentina? Uma das frases mais célebres sobre o país — ou sobre sua tragédia— é atribuída a Simon Kuznets, prêmio Nobel de Economia em 1971: "Existem quatro tipos de países no mundo: desenvolvidos, subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina".

Turistas visitam a Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, o palácio presidencial, em Buenos Aires - Luis Robayo - 27.out.25/AFP

A eleição de um libertário em um país marcado pelo intervencionismo estatal e pela instabilidade fiscal não deveria surpreender. Situações de crises recorrentes tendem a produzir respostas políticas radicais. O feito, no entanto, não é apenas individual. O partido La Libertad Avanza (LLA) saltou de 14% para 41% das cadeiras na Câmara. Três fatores foram decisivos: a mais baixa taxa de comparecimento às urnas em quatro décadas (67%), apesar do voto obrigatório; o swap cambial de US$ 20 bilhões (R$ 107 bilhões) de Trump; e a promessa do presidente dos EUA de descontinuar apoio se Milei viesse a perder. O peronismo foi amplamente derrotado. Como alternativa era ainda pior.

A trajetória do declínio argentino é inseparável da história do peronismo. Juan Domingo Perón foi ministro e vice-presidente durante o regime militar (1943–1945), eleito presidente em 1946, reeleito em 1951 e deposto em 1955, ele retornou ao poder em 1973, falecendo em 1974. A radicalidade de seu movimento expressou-se na rejeição à democracia representativa e na mobilização social agressiva. Não por acaso, Seymour Martin Lipset classificou o peronismo como "fascismo de esquerda" em "Political Man: The Social Bases of Politics" (1960).

O peronismo estruturou de modo duradouro a política argentina e seus efeitos ainda se refletem nos resultados eleitorais recentes, como destaca Andrés Malamud. A geografia do voto em Milei revela padrões consistentes com essa trajetória histórica.

Após a redemocratização de 1983, peronistas e radicais alternaram-se no poder, período que se iniciou com Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical (UCR). Nas últimas duas décadas, entretanto, essa lógica foi substituída pela ascensão de novos partidos. Como sintetiza Malamud, "o que muda é a ideologia interna do peronismo e o partido externo do não peronismo. É este último que mantém uma identidade que muda de instrumento [partidário] ao longo do tempo".

Enquanto o peronismo se deslocou radicalmente para a esquerda sob os Kirchners, o campo não peronista viu surgir alternativas à UCR, em processo comparável ao declínio do PSDB no Brasil —primeiro com o PRO de Mauricio Macri e, agora, com Milei. Isso explica as vitórias recentes em redutos historicamente ligados à UCR, já que as bases sociais do mileísmo se concentram no campo não peronista, com exceção parcial do eleitorado jovem.

A imagem de Malamud é certeira: "o peronismo continua existindo porque fracassou; o radicalismo deixou de existir porque teve sucesso." Enquanto os radicais desempenharam papel decisivo na redemocratização e na consolidação institucional, os peronistas mantêm um voto essencialmente identitário, resistente apesar dos reiterados fracassos.

Milei virou o jogo e ganhou tempo: conta com quórum para veto presidencial, base ampla e —seu calcanhar de aquiles— recursos para negociar com governadores.


Rio expõe falha em calcular taxa da bala, Marcos de Vasconcellos, FSP

 A megaoperação policial do Rio de Janeiro, que contabiliza, até agora, o saldo de 121 mortos, 113 presos e 118 armas apreendidas, é o exemplo mais recente de como o Brasil falha em tratar a criminalidade como uma questão econômica.

Vidas são bens de valor inestimável, e imagino que as fotografias dos corpos dos mortos em praça pública já tenham feito seu papel de te lembrar disso. Mas o outro custo, o mensurável, de vivermos em um rodízio de incursões violentas às regiões dominadas pela criminalidade, é alto.

Seis policiais militares armados escoltam homem detido, que está curvado e com as mãos para trás, em rua estreita de comunidade com casas coloridas e paredes desgastadas.
Policiais durante operação policial na Vila Cruzeiro, no complexo de favelas da Penha, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Ele aparece nos balanços das empresas, na fuga de investimentos, na desvalorização de ativos e, por fim, nas taxas de juros de que o país precisa oferecer para atrair capital. Sim, o crime é uma variável econômica, muito além dos gastos em segurança pública.

Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a violência custa em média 3% do PIB por ano aos países da América Latina, consumindo o equivalente a todo o investimento anual em infraestrutura. É dinheiro que poderia financiar estradas, escolas ou crédito produtivo, mas que se perde em segurança, indenizações, perda de produtividade e retração de investimento.

Onde há desordem, há risco. E, para correr riscos, o dinheiro cobra mais caro. Um estudo publicado pela City, University of London sobre o México mostrou que o aumento da criminalidade local eleva, diretamente, o custo do crédito. Os bancos não deixaram de emprestar, mas aumentaram os juros.

O que os economistas chamam de penalidade financeira dá para chamar também de taxa da bala.

A operação espetacular pode dar uma sensação de "vingança" para quem vive no medo de ser assaltado, roubado, morto por criminosos. Mas a atuação pontual serve para o Estado reforçar a própria fragilidade. O território é retomado por um dia e abandonado no seguinte. O tamanho da ação prova ausência do Estado nos tempos que a antecederam.

Quando o Estado recua, como se o trabalho ali estivesse resolvido, o tráfico e a milícia prosperam com lógica empresarial de diversificação, reinvestimento e rebuscados esquemas de lavagem de dinheiro —vide a operação Carbono Oculto, que mostrou os braços do PCC na Faria Lima.

Fazer o Estado realmente ocupar os espaços até então abandonados depende de investimentos. A experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), projeto praticamente abandonado, deixou pistas do que funciona e do que não funciona na ocupação de áreas dominadas pelo crime.

Pela análise de especialistas em segurança pública, as UPPs serviram nos primeiros anos para reduzir a criminalidade local e melhorar a infraestrutura. A parte social, que estava no projeto, nunca chegou a ser implementada de verdade e, quando o dinheiro minguou, manter as unidades, já esvaziadas, tornou-se um fardo e um risco à vida de quem nelas trabalhava. O fracasso não foi policial, mas econômico.

Quando o Estado sai, o crime ocupa e o dinheiro some. Entre os países com menos de 1 homicídio por 100 mil habitantes, como Japão, Alemanha e Suíça, o juro real médio é próximo de zero. Entre os que convivem com mais de 20 homicídios, como Brasil, México e Nigéria, os juros reais superam 5%.

O ciclo fúnebre se mantém: investimento malfeito no combate à criminalidade traz novos rombos à confiança, impedindo que o dinheiro venha para ser investido em melhorias reais e necessárias, abrindo novas brechas para o crime.

Coletânea mostra atualidade de pensadores existencialistas, FSP

 Recebi na última sexta-feira uma cópia de "The Penguin Book of Existentialist Philosophy", editado por Jonathan Webber, especialista na obra de Jean-Paul Sartre e professor no Departamento de Filosofia da Universidade de Cardiff, no País de Gales.

Com o lançamento previsto para novembro, "The Penguin Book of Existentialist Philosophy" é uma coletânea de textos que compreende desde autores que influenciaram o pensamento existencialista, como Søren Kierkegaard, Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger e Sigmund Freud, bem como ensaios e trechos das principais obras de Sartre, Simone de Beauvoir e Frantz Fanon.

Mulher e homem em meio a outras pessoas durante cerimônia. Prédio da praça em Pequim ao fundo
Simone de Beauvoir (esq.) e Jean-Paul Sartre em comemoração na praça Tiananmen, em Pequim, em 1955 - Wikimedia Commons/Reprodução

Dividido em cinco partes —"Inspirações", "O ser e o nada", "A ofensiva existencialista", "O segundo sexo" e "Colonialismo e racialização"—, o livro ainda conta com um ensaio introdutório e textos de apresentação escritos por Webber, nos quais o professor reflete sobre o que caracteriza o existencialismo enquanto movimento filosófico, além de contextualizar e justificar as suas escolhas editoriais.

Em sua introdução, Webber comenta que o rótulo de existencialista foi inicialmente usado de modo genérico para descrever a geração de artistas, músicos e escritores do final da Segunda Guerra Mundial, cujas obras abordavam questões relacionadas ao indivíduo e à realidade social. Um exemplo disso é a canção "Le Poinçonneur des Lilas", de Serge Gainsbourg, que trata da alienante rotina de trabalho de um fiscal do metrô parisiense.

A expressão, no entanto, foi adotada por Sartre e Beauvoir na tentativa de promover as suas teorias filosóficas sobre a existência humana. Essas teorias se baseiam na premissa de que "o comportamento de cada pessoa é, em última instância, guiado por atitudes avaliativas — ou ‘projetos’ — que ela própria escolheu e pode modificar".

Uma breve introdução à filosofia existencialista, aqui entendida de forma precisa e não apenas como um rótulo genérico, é o ensaio "O existencialismo e a sabedoria das nações" (1945), de Simone de Beauvoir, incluído na coletânea organizada por Webber.

É justamente por entender o existencialismo enquanto um movimento estruturado a partir de determinadas premissas teóricas inicialmente elaboradas por Sartre e Simone de Beauvoir que Webber não inclui no livro uma seção com textos de Albert Camus:

"O posfácio da antologia explica por que Albert Camus, frequentemente classificado como existencialista, não foi incluído no restante do livro [...]. [Camus e Sartre] dialogam com alguns dos mesmos autores e abordam questões semelhantes. Eles divergem, contudo, quanto à natureza fundamental da existência humana e quanto à origem dos valores morais [...]. O existencialismo é definido pelo que Sartre e Beauvoir compartilhavam na década de 1940. Dentro dessa definição, são as obras de Sartre, Beauvoir e Fanon incluídas nesta antologia, com todas as suas divergências e desacordos, que estabeleceram a arena inicial para o debate e a reflexão existencialista."

Os textos selecionados por Webber mostram que, mesmo com suas limitações, as principais ideias de Sartre, Beauvoir e Fanon permanecem relevantes e podem, inclusive, contribuir para discussões mais recentes sobre a relação conflitosa que muitos dos nossos contemporâneos mantêm com a verdade.

Em "Reflexões sobre a questão judaica" (1946), cuja primeira parte integra a coletânea, Sartre observa, ao retratar o antissemita, que a distorção de fatos com a intenção de confirmar uma visão de mundo pode ser interpretada como uma expressão do medo diante da complexidade da vida e das incertezas que caracterizam a condição humana:

"O homem racional busca angustiosamente a verdade, ele sabe que seus raciocínios são apenas prováveis, que outras considerações acabarão por colocá-los em dúvida [...]. Mas existem pessoas que são atraídas pela constância das pedras [...]. Como têm medo de pensar, preferem adotar um modo de vida em que a reflexão e a pesquisa exercem um papel subordinado, em que procuram apenas o que já encontraram e se tornam tão somente aquilo que já são."

Nesses casos, Sartre observa que a paixão se sobrepõe à razão, oferecendo a essas pessoas uma sensação de absoluta certeza, capaz de resistir à toda e qualquer experiência e permanecer inabalável ao longo de uma vida.

Além do trecho de Sartre, outros textos reunidos no volume, como os trechos de "Pele Negra, Máscaras Brancas" (1952), de Frantz Fanon, também dialogam com questões contemporâneas e fazem da coletânea organizada por Jonathan Webber uma excelente introdução ao pensamento existencialista. Deixo aqui, portanto, minha recomendação de leitura a estudantes, pesquisadores e também ao público leitor curioso, disposto a conhecer um pouco melhor essa tradição filosófica.