quarta-feira, 30 de abril de 2025

É hora de reconhecer: Pedro Álvares Cabral não foi o primeiro, Rodrigo Tavares - FSP

 

Se, na vila portuguesa de BelmontePedro Álvares Cabral é celebrado como herói local, em Palos de la Frontera, na Espanha, comemoram-se os grandes navegadores que partiram daqui para as Américas —como Colombo, Martín Alonso Pinzón e Vicente Yáñez Pinzón, este último o primeiro estrangeiro a chegar ao Brasil, alguns meses antes de Cabral.

A informação é apresentada sem reservas pelo historiador residente no Mosteiro de La Rábida, centro espiritual e político da expansão ultramarina espanhola, a poucos quilômetros de Palos. Pinzón, veterano da frota de Colombo, zarpou daqui em novembro de 1499 com quatro caravelas, numa missão privada de exploração. Uma tempestade o desviou para a costa sul-americana.

A imagem mostra uma praça ensolarada com piso de pedras. No primeiro plano, há um vaso de flores colorido com plantas. Ao fundo, há edifícios brancos com janelas e varandas, além de árvores e um espaço aberto. O céu está claro e azul, indicando um dia ensolarado.
Praça de Andaluzia, no centro de Palos de la Frontera, na Espanha - Rodrigo Tavares/Folhapress

O local exato do desembarque no Brasil, que Pinzón batizou de Cabo de Santa María de la Consolación, é tema de debate: alguns apontam o Cabo de Santo Agostinho (PE); outros sugerem locais no Ceará, como a Ponta Grossa, Ponta de Itapajé ou Ponta de Mucuripe. Em outro ponto do Nordeste, que chamou de "rostro hermoso", fincou uma cruz com o brasão de Castela.

Ainda assim, a Espanha não reivindicou oficialmente a posse. Pelo Tratado de Tordesilhas (1494), aquele território pertencia a Portugal na divisão do mundo entre as duas coroas ibéricas.

A chegada do navegador, em 26 de janeiro de 1500, está bem documentada por relatos de bordo, testemunhos e cronistas como Bartolomé de las Casas e Pietro Martire d’Anghiera. Esses registros estão no Arquivo Geral das Índias, em Sevilha. O célebre mapa de Juan de la Cosa, de 1500, considerado o mais antigo a retratar as Américas, hoje preservado no Museu Naval de Madri, traz uma inscrição sobre o litoral brasileiro: "Este cabo foi descoberto em 1499 por Castela, sendo o descobridor Vicente Yáñez." A Encyclopædia Britannica também reconhece Pinzón como o pioneiro.

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Diante disso, a historiografia portuguesa tentou deslocar o desembarque de Pinzón para cabo Orange, próximo à Guiana Francesa, já fora dos limites estabelecidos por Tordesilhas.

No Brasil, a sua presença não é ignorada: Pinzón dá nome a um bairro em Fortaleza e a sua proeza é corroborada por historiadores como Varnhagen, Max Justo Guedes e Eduardo Bueno. A imprensa brasileira, como o Poder360Diário do Nordeste e Folha, também já tratou do tema. A tese espanhola aparece no site oficial do governo do Ceará.

Para entender essa história, é essencial visitar Palos de la Frontera, a poucos minutos de Huelva. Escrevo daqui, na semana de São Jorge Mártir, padroeiro local. A vila preserva a memória das grandes navegações em marcos como a Igreja de San Jorge —onde os navegadores rezavam antes de partir e foi lido o édito real que convocava marinheiros à frota de Colombo—, a fontanilla, que abasteceu as caravelas, e o solar da família Pinzón, na calle Cristóbal Colón.

No Mosteiro de La Rábida, um retrato a óleo de Vicente Pinzón e o brasão da família adornam a Sala Capitular. Na costa, o Muelle de las Carabelas exibe réplicas em tamanho real das embarcações da época.

A imagem mostra um escudo emoldurado com uma moldura dourada elaborada. O escudo apresenta uma figura central com um fundo escuro, onde se destaca uma figura humana estilizada com um chapéu ou elmo, adornado com uma fita. O escudo tem cores predominantes em vermelho e azul, com detalhes em branco e dourado.
Brasão da família Pinzón no Mosteiro de la Rábida - Rodrigo Tavares/Folhapress

Reconhecer Pinzón não apaga Cabral, mas desmonta o mito de um início absoluto. A história brasileira não começa com um europeu —português ou espanhol—, pois já havia povos, culturas e vidas plenamente estabelecidas. Pinzón encontrou esses habitantes originários, que foram os primeiros a registrar a chegada estrangeira. A história não é feita de exclusividade, mas de encontros, conflitos e coexistências. E não há maturidade historiográfica sem reconhecer essa pluralidade originária.

A viagem de Pinzón merece, por isso, reconhecimento oficial por parte do Congresso Nacional brasileiro, além de iniciativas educacionais que resgatem o seu papel histórico. A sua expedição contribuiu significativamente para o alargamento do conhecimento geográfico do Atlântico Sul e representou o primeiro contato europeu registrado com o território brasileiro. Negá-lo é reafirmar a história como doutrina ou simbologia nacional, e não como campo de investigação crítica.

Por que os EUA perderão para a China, Martin Wolf - FT FSP

 O "Dia da Libertação" de Donald Trump, com supostas tarifas recíprocas contra o resto do mundo —possivelmente as propostas de política comercial mais excêntricas já feitas— transformou-se, após uma rápida recuada sob pressão dos mercados, em uma guerra comercial com a China. Isso pode (ou não) ter sido o que se pretendia desde o início.

Então, Trump pode vencer esta guerra contra a China? Na verdade, os Estados Unidos, como estão agora após o segundo mandato de Trump, podem esperar ter sucesso em sua rivalidade mais ampla com a China? A resposta para ambas as perguntas é não. E isso se dá não porque a China é invencível, longe disso. Mas sim porque os EUA estão jogando fora todos os ativos de que precisam para manter seu status no mundo contra uma potência tão enorme, capaz e determinada como a China.

A imagem mostra uma fileira de patinhos de borracha com características que lembram um personagem famoso. Cada patinho tem cabelo loiro e um terno azul, com uma gravata vermelha. Eles estão dispostos em uma prateleira, com alguns patinhos parcialmente visíveis ao fundo.
Brinquedos representando o presidente dos EUA Donald Trump na forma de um pato em loja em Copenhague - Sergei Gapon - 11.abr.25/AFP

"Guerras comerciais são boas e fáceis de vencer", Trump publicou em 2018. Como ideia geral, isso é falso: guerras comerciais prejudicam ambos os lados. Um acordo que deixe ambas as partes mais beneficiadas do que antes pode ser alcançado. Mas, mais provavelmente, qualquer acordo deixará um lado melhor do que antes e o outro pior. Este último tipo de acordo é, presumivelmente, o que Trump espera que surja: os EUA vencerão e a China perderá.

No momento, os EUA impõem uma tarifa de 145% sobre importações chinesas, enquanto a China impõe uma tarifa de 125% sobre os EUA. A China também restringiu exportações de terras raras para os EUA. Essas são barreiras comerciais muito altas, de fato proibitivas. Isso parece um "impasse mexicano", que nenhum dos lados pode vencer, entre as duas superpotências.

Entende-se que o plano dos EUA (se é que existe um) é "persuadir" parceiros comerciais a impor pesadas barreiras às importações da China em troca de um acordo favorável sobre comércio (e talvez em outras áreas, como segurança) com os EUA. Esse resultado é plausível? Não.

Uma razão é que a China também tem cartas poderosas. Muitas potências significativas já fazem mais comércio com a China do que com os EUA: isso inclui Austrália, Brasil, Índia, Indonésia, Japão e Coreia do Sul. Sim, os EUA são um mercado de exportação mais importante do que a China para muitos países importantes, em parte devido aos déficits comerciais dos quais Trump reclama. Mas a China também é um mercado significativo para muitos. Além disso, a China é uma fonte de importações essenciais, muitas das quais não podem ser facilmente substituídas. Importações são, afinal, o propósito do comércio.

Acima de tudo, os EUA deixaram de ser confiáveis. Um EUA "transacional" está sempre buscando um acordo melhor. Nenhum país sensato deve apostar seu futuro em tal parceiro, especialmente contra a China. O tratamento de Trump ao Canadá foi um momento decisivo. Os canadenses responderam reelegendo os liberais.

Trump aprenderá com isso? Um leopardo pode mudar suas manchas? É assim que ele é. Ele também é um homem que os eleitores americanos elegeram duas vezes. Além disso, romper com a China seria arriscado: a China não esquecerá e provavelmente não perdoará.

Não menos importante, a China acredita que seu povo pode suportar a dor econômica melhor que os americanos. Além disso, para o país asiático, a guerra comercial é principalmente um choque de demanda, enquanto para os EUA é principalmente um choque de oferta. É mais fácil substituir a demanda perdida do que a falta de fornecimento.

Em suma, os EUA não conseguirão os acordos que aparentemente buscam e a vitória sobre a China que esperam. Minha suposição é que, à medida que isso se torne evidente para a Casa Branca, Trump recuará pelo menos parcialmente de suas guerras comerciais, declarando vitória, enquanto segue em alguma outra direção.

No entanto, isso não muda a realidade de que os EUA estão de fato competindo com a China por influência global. Infelizmente, o EUA que muitos querem que se saia bem nessa história não é este EUA.

Os EUA de Trump não se sairão bem. Sua população é um quarto da da China. Sua economia tem praticamente o mesmo tamanho, porque é muito mais produtiva. Sua influência, cultural, intelectual e política, ainda é muito maior que a da China porque seus ideais e ideias são mais atraentes. Os EUA foram capazes de criar alianças poderosas com países de mentalidade semelhante que reforçam essa influência. Em suma, herdaram e foram abençoados com enormes ativos.

Agora, considere o que está acontecendo sob o regime Trump: tentativas de transformar o Estado de direito em um instrumento de vingança; o desmantelamento do governo; desprezo pelas leis que são a base de um governo legítimo; ataques à pesquisa científica e à independência das grandes universidades americanas; guerras contra estatísticas confiáveis; hostilidade em relação aos imigrantes (e não apenas os ilegais), embora eles tenham sido a base do sucesso dos EUA em todas as gerações; um repúdio total da ciência médica e da ciência climática; uma rejeição total das ideias mais básicas na economia do comércio; uma equivalência ou (muito pior que isso) preferência por Vladimir Putin, o tirano da Rússia, sobre Volodimir Zelenski, presidente da Ucrânia democrática; e desprezo aberto pelo conjunto de alianças e instituições de cooperação sobre as quais repousa a ordem global construída pelos EUA. Tudo isso nas mãos de um movimento político que abraçou a insurreição de janeiro de 2021.

Sim, a ordem econômica global precisava de melhorias. O argumento para que a China mude para um crescimento liderado pelo consumo é esmagador. Também está claro que muitas reformas são necessárias dentro dos EUA. No entanto, o que está acontecendo agora não é reforma, mas a ruína dos fundamentos do sucesso dos EUA, em casa e no exterior. Será difícil reverter os danos. Será impossível para as pessoas esquecerem quem e o que os causou.

Um EUA que está tentando substituir o Estado de direito e a Constituição por um capitalismo corrupto de compadrio não superará a China. Um EUA puramente transacional não receberá o apoio incondicional de seus aliados. O mundo precisa de um EUA que compita e coopere com a China. Este EUA, infelizmente, falhará em fazer bem qualquer uma das duas coisas.

O espetáculo da decomposição: Bolsonaro aposta na morbidez e gera repulsa, Wilson Gomes, FSP

 Que Bolsonaro é um personagem que se representa em dois registros performáticos, alternados conforme a conveniência, é algo que venho afirmando há anos. Há, de um lado, o modo valentão, arruaceiro, irreverente e afrontoso, que serve bem ao vitalismo de quem aprecia líderes autoritários, fortes e que se impõem. Mas há também a chave oposta: a do coitadinho, da vítima, do perseguido e do sofredor, que exige comoção e compaixão —acompanhadas, naturalmente, de um sentimento de revolta contra quem lhe teria infligido tamanha injustiça.

Os dois modos se sucedem em circuito contínuo, sempre nesta sequência: primeiro, a bravata, o insulto, a ameaça expelida em nuvens de perdigotos, a exibição da coragem viril; depois, caso algo dê errado, o ator troca a máscara e reaparece coberto de dores e tormentos, lágrimas nos olhos ou expressão resignada, clamando por solidariedade dos seus diante do cerco de inimigos implacáveis.

Se reuníssemos todos os cortes de vídeos em que Bolsonaro —antes e depois de ungido como o "Davi do antipetismo"— afronta, pisa, xinga, grita, lacra, desafia e ameaça, teríamos um longa-metragem de dimensões consideráveis. Foi com esse personagem que ele se transformou no "mito" de uma geração que glorifica a irreverência, o politicamente incorreto, a afirmação brutal da pulsão de vida e, sobretudo, o próprio ressentimento.

Por outro lado, tampouco faltam cenas de choro compulsivo, denúncias de perseguição pelo "sistema", exibição das chagas físicas e alegações constantes de ser uma vítima permanente e injustiçada.

Calhou agora de testemunharmos uma nova performance do modo "coitadinho", depois de termos assistido, até em live hospitalar, a encenações recentes do modo "machão". Desta vez, com especial insistência na exibição do corpo da pobre vítima internada, retalhada e agonizante: não mais o "físico de atleta" e a imodesta glorificação das próprias habilidades militares, mas a exposição quase obscena de cicatrizes feias e assimétricas, de um corpo surrado, cortado e disforme, coberto de hematomas e drenos —a imagem de um homem prostrado e vencido.

Nem os sinais habituais de otimismo —típicos da liturgia digital das celebridades internadas, com selfies, mensagens de superação e flores no quarto— comparecem. Não há balões, nem sorriso forçado, nem "joinhas" de esperança. Bolsonaro se exibe —ele mesmo, em suas redes sociais— grotesco, exausto, quase cadavérico. A feiura —do corpo, da imagem e da situação— é buscada, é intencional. A mensagem não é de resistência e superação, mas de martírio e sacrifício. Não é o herói ferido; é o mártir em pleno ato sacrificial.

Sobre uma parede de azulejos de hospital, três pregos, e, de cada prego pende uma máscara de papelão colorida.  De esquerda para direita, a máscara de Frankenstein, logo a de Zé do Caixão e finalmente a de Drácula.  Aguardando penduradas que o seu dono vista uma delas na sua próxima "performance”.
Ariel Severino/Folhapress

Em outros tempos, os dois modos performativos de Bolsonaro eram mais bem controlados por seus roteiristas e diretores de imagem. Agora, algo parece ter escapado da velha arte de construir narrativas e controlar a performance que seu círculo íntimo dominava com habilidade.

Ser "coitadinho" no molde original —ultrajado, mas não vencido, preparando-se para retaliar— é uma coisa. Outra, bem diferente, é encenar uma espécie de Noiva Cadáver política, em que o líder se exibe mutilado, caindo aos pedaços e se decompondo em público. Se o objetivo era provocar compaixão e revolta, Bolsonaro pode ter errado a mão: a sensação provocada é de desconforto e repulsa.

Nas hostes adversárias, alguns enxergam na profusão de imagens hospitalares ecos inconscientes do culto à morte que marcou o franquismo tardio, por exemplo. Mas nada, nos antecedentes da dramaturgia bolsonarista, autoriza essa leitura. O grotesco, o cru e o feio na iconografia de Bolsonaro sempre foram instrumentos para evocar autenticidade e irreverência, jamais para convocar a morbidez ou a celebração da decadência. E o "modo vítima" sempre foi acionado para ativar narrativas de reação e revanche, não para exibir ruína e decomposição. O bolsonarismo sempre foi, nesse sentido, um revanchismo vitalista, não um mórbido decadentismo.

Essa performance de um líder despido e mutilado em um leito de hospital não corresponde ao roteiro original. Os diretores de "Bolsonaro, o filme" sempre souberam usar o vitimismo como motor para novas investidas, exibindo as feridas como provas de resiliência —à maneira de Trump, que, mesmo ferido a bala, convocava o contra-ataque.

Talvez, sem perceber, Bolsonaro tenha inaugurado —em ato— a imagem crepuscular de seu personagem maior: não o mito inviolável, mas um corpo batido pelo tempo e pelas circunstâncias, decompondo-se em público.