quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Carter foi um grande presidente, Elio Gaspari, FSP

Faltando poucas semanas para o retorno de Donald Trump à Casa Branca, lá se foi Jimmy Carter. Tinha 100 anos e governou os Estados Unidos de 1977 a 1981. Batido por Ronald Reagan, teve um só mandato. Assumiu empunhando a bandeira da democracia e dos direitos humanos, mas foi moído por uma inflação de 9,9% e por suas virtudes de homem simples.

O balanço de sua presidência acompanhou os necrológios que lhe deram os créditos negados na eleição de 1980. O Brasil deveu a Carter o corte do cordão umbilical que ligava a ditadura ao beneplácito de Washington.

Jimmy Carter, então presidente dos EUA, discursa na Casa Branca e anuncia novas sanções contra o Irã
Jimmy Carter, então presidente dos EUA, discursa na Casa Branca e anuncia novas sanções contra o Irã - Marion S. Trikosko - 7.abr.80/Library of Congress via Reuters

Em 1971, quando o general Emílio Médici visitou Washington, o presidente Richard Nixon disse: "Nós sabemos que, para onde for o Brasil, para lá irá o resto da América Latina". Dois anos depois, os militares governavam o Uruguai e o Chile. Em 1976, foi a vez da Argentina.

Carter governou o pequeno estado da Geórgia e sua experiência nacional era nula. Em março de 1976, numa palestra no Council of Foreign Relations, associou seu futuro político à defesa dos direitos humanos, mas ninguém prestou atenção. Meses depois, deu nome a um dos bois: "O Brasil não tem um governo democrático. É uma ditadura militar. Em muitos aspectos, é altamente repressiva para os presos políticos. Nosso governo deve corresponder ao caráter e aos princípios morais do povo americano, e nossa política externa não pode contorná-los em troca de vantagens temporárias".

A charanga da ditadura orientou-se pela sabedoria convencional. Aquilo era conversa de candidato. Ele se elegeu, botou na área de direitos humanos do Departamento de Estado a enfermeira Patricia Derian, militante histórica da luta dos negros americanos e como alto funcionário de delegação na ONU, o professor Brady Tyson. Nos anos 60, ele havia sido convidado a deixar o Brasil. Se isso fosse pouco, Carter, que se dizia engenheiro nuclear (coisa que nunca foi), opunha-se a um acordo assinado pelo Brasil com a Alemanha. Se ele fosse em frente, seriam construídas centrais nucleares e também uma usina de reprocessamento de urânio.

Carter desossou o Acordo Nuclear e, em 1977, mandou ao Brasil sua mulher, Rosalynn. Passando pelo Recife, ela entrevistou-se, ao vivo e a cores, com dois missionários americanos que viviam com os pobres da cidade e haviam sido presos.

Em março de 1978, foi a vez de Carter vir ao Brasil. Teve uma recepção cordial, porém fria. Como ele queria ouvir pessoas da sociedade civil, marcou-se um encontro, no Rio, depois de encerrada a parte oficial da visita. Carter encontrou-se, entre outros, com o presidente da OAB, Raymundo Faoro, com o diretor de O Estado de S. Paulo, Julio de Mesquita Neto, e com o cardeal d. Paulo Evaristo Arns. A coreografia da conversa prenunciava uma estudada irrelevância: todos de pé.

O esquema falhou. Carter convidou d. Paulo para acompanhá-lo ao aeroporto e, sentados, conversaram por boa meia hora.

Nota de pé de página: Anos depois, quando Carter e Geisel haviam deixado os governos, ele voltou ao Brasil. Tentou marcar um encontro e não conseguiu. Ligou para Teresópolis, onde vivia o ex-presidente, e ele não atendeu. Era o troco devido por ter mandado a mulher para sabatiná-lo. 

Túnel do tempo, Ruy Castro FSP (belíssimo)

 

Já contei parte dessa história. Perto da meia-noite de 31 de dezembro de 1967, saímos em turma do Solar da Fossa, do outro lado do Túnel Novo, para assistir à passagem do ano em Copacabana, ali perto. Era diferente. Não havia shows de artistas nem fogos nem dois milhões de pessoas na praia. Ia-se jogar flores para Iemanjá e brindar ao Ano Novo com alguma coisa.

Às cinco para a meia-noite, os bacanas desciam de smoking dos edifícios na avenida Atlântica. Jogavam suas flores, tomavam champanhe à beira-mar e, à meia-noite e cinco, voltavam para seus apartamentos onde rolavam as festas de verdade, com as deusas do momento e as celebridades internacionais.

Nossa expedição era mais modesta, mas com algo que eles nunca poderiam superar: éramos jovens. Eu tinha 19 anos, era repórter da revista Manchete e morava no Solar, lugar difícil de definir —um ex-convento, de propriedade dos padres, transformado numa espécie de república para atores, compositores, cantores, poetas e jornalistas duros. Já então havia uma lenda sobre o Solar, e com razão.

Nele campeavam a liberdade, o talento, a contestação. Caetano Veloso, um dos moradores, mudara-se pouco antes, para São Paulo, por causa de um programa na Rádio Record.

A ideia era atravessar o túnel a pé e seguir pela avenida Princesa Isabel até a praia. Foi o que fizemos. Não me lembro se essa foi a ideia original ou se apenas calculamos mal, mas, em meio aos 300 metros do túnel, ouvimos os foguetes lá fora. E concluímos: tínhamos entrado nele em 1967 e sairíamos dele em 1968.

Ninguém se importou, e por que se importaria? Era como atravessar o túnel do tempo. Se 1967 já fora um ano de conquistas —as passeatas dos estudantes contra a ditadura, a disseminação da pílula, o começo da revolução sexual, o estouro dos festivais da canção—, 1968 seria melhor ainda. E foi mesmo —só que terminou mais cedo, no dia 13 de dezembro, e muito mal, com o AI-5. Não esperou chegar ao dia 31.
A travessia do túnel foi um marco. Quando se tem 19 anos, há tanto futuro pela frente que o ano que ficou para trás vai disparado para a pré-história.

Vista noturna da praia de Copacabana - 27.abr.1995/Reprodução

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Deirdre Nansen McCloskey O que se pode chamar de liberalismo?, FSP

 


Criei um rótulo para o que sou e o que quero que você se torne para podermos ter êxito na construção de uma boa sociedade. Até recentemente, eu o chamava de liberalismo "verdadeiro". Isso insulta meus muitos bons amigos que se dizem liberais. Ele diz: "Eu sou verdadeiro. Você, infelizmente, é falso". "Liberal verdadeiro" tem o mesmo problema. Você nem é real. Uma espécie de fantasma!

Agora, é claro que eu realmente acredito que esses meus queridos amigos "liberais" são, em certo sentido, falsos e não reais. Não é que eles sejam insinceros em sua afirmação de que são liberais, mas que estão enganados em como o chamam. E não é uma questão de "mera" retórica. A retórica tem grandes consequências na política.

A histórica rota 66, nos Estados Unidos - Robyn Beck 8.jul.23/AFP

Em particular, muitos dos meus amigos "liberais" acreditam no oposto do liberalismo. Tudo começou após o breve pico da ideologia liberal no início do século 19, como na Constituição espanhola de 1812 ao declarar que o "princípio servil" seria abolido. Não haveria mais senhores. Um liberalismo "novo" ou "social" foi introduzido na década de 1880 na Grã-Bretanha, o lar do liberalismo. E ainda está entre nós. Ele diz: "Vamos usar os poderes do Estado para coagir as pessoas a ajudar os pobres e, ao mesmo tempo, coagir os próprios pobres". Por exemplo, a eliminação de favelas era vista como Novo Liberalismo. "Vou derrubar suas casas", dizia ele aos pobres, "porque é bom para vocês."

Nos EUA, até a década de 1960, favelas foram derrubadas para construir superestradas cortando o centro das cidades. Não causa surpresa que rodovias fossem usadas para segregar negros de brancos, como em Chicago. E assim por diante. "Torne ilegal pagar a você menos do que um alto salário mínimo", assim, se os patrões acharem que você não vale tanto, você ficará sem emprego.

Como chamar o liberalismo de Adam Smith, Mary Wollstonecraft e do antigo J.S. Mill, e depois pessoas como Milton Friedman? O que é chamado de liberalismo "clássico", ou "libertarianismo" nos EUA, ambos têm seus próprios problemas. "Clássico" faz o liberalismo parecer antiquado, o que é incorreto. E "libertarianismo" nunca ficou claro para a maioria dos norte-americanos, embora suas políticas sejam o que a maioria deles quer.

PUBLICIDADE

Minha avó, nascida na década de 1890, tinha um princípio clássico-libertário: "Faça o que você quiser, mas não assuste os cavalos". No entanto, alguns autointitulados libertários nos EUA hoje em dia são tão coercitivamente contra qualquer socialismo que se inclinaram para o fascismo e apoiam Trump. Incrível. Eles assustam os cavalos, e certamente a mim.

Qual é o meu novo rótulo? Liberalismo "suficiente". Quero dizer, uma igualdade de permissão, não igualdade de renda ou de oportunidade —ambas as quais envolvem coerção e, de qualquer forma, são inatingíveis, mesmo grosseiramente. Mas podemos começar a dar permissão às pessoas, amanhã, retirando os milhões de regulamentações que obstruem a economia dos EUA e do Brasil. Uma mulher pode se tornar piloto de avião, um negro pode conseguir um emprego na África do Sul, pessoas pobres podem viver onde podem pagar o aluguel, sem que o Estado intervenha, como fez, para segregar as pessoas pobres em favelas.

Sem senhores, sem coerções. É o suficiente.