Pouco mais de 15 anos depois de dois aviões atingirem as torres do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001, o professor de arquitetura e planejamento da Universidade de Newcastle, Stephen Graham, está convencido de que Nova York se parece mais com Bagdá hoje do que antes dos ataques terroristas que moldaram esse início de século.
Titular da cadeira Cidades e Sociedades, Graham defende a tese de que as doutrinas militares usadas para controlar cidades em guerra, como a capital iraquiana, se tornaram um modelo para as forças de segurança das metrópoles ocidentais. “Os métodos de controle, os equipamentos, a tecnologia e mesmo a doutrina militar usada em áreas urbanas de combate têm sido implantados amplamente nas nossas cidades”, diz. “O centro de Manhattan não é tão diferente da Zona Verde de Bagdá.”
Autor do livro Cidades Sitiadas: o Novo Urbanismo Militar (Boitempo), recém-lançado no Brasil, Graham expõe essa tendência com preocupação. O assassinato de Keith Lamont Scott, mais um negro desarmado morto pela polícia, em Charlotte, no estado americano da Carolina do Norte, em meados de setembro, e o uso de agentes infiltrados pelo Exército no Brasil, como o ocorrido em São Paulo no final de agosto, são exemplos desse tipo de mentalidade militar nas cidades, na opinião de Graham. “As polícias têm reforçado a ideia de que certos grupos sociais, raciais ou étnicos são os inimigos em uma guerra.”
Em um livro repleto de exemplos, Graham demonstra como o uso de equipamentos de combate vem crescendo no patrulhamento das grandes cidades. “Veículos que foram usados no Iraque e no Afeganistão estão sendo empregados pelas polícias americanas, assim como drones e sistemas de vigilância.” Ele aponta a tendência de exagerar a ideia de proteção não só na estrutura física das cidades (menos árvores em espaços abertos, traçado de ruas que desconsideram aspectos históricos e até o formato de postes e lixeiras), mas também de forma simbólica, quando usamos o termo “guerra” para descrever problemas urbanos (“guerra às drogas, ao crime, ao terror”).
Nesta entrevista ao Aliás, Graham fala sobre os impactos de uma sociedade civil controlada por uma lógica cada vez mais militarizada.
O que o sr. chama de novo militarismo urbano?
Até a Guerra Fria, o campo de batalha estava distante, geralmente em vastos campos abertos. Com o mundo cada vez mais urbano, agora, as guerras estão sendo travadas dentro das cidades e não só em países distantes. Nas últimas duas décadas, tantos as forças militares quanto as forças de segurança domésticas estão usando aparatos que antes eram utilizados apenas nos campos de batalha pra controlar e dominar ambiente urbanos. É algo diferente. E novo. As tecnologias usadas na Guerra Fria, como mísseis de longo alcance, sistemas de interceptação por satélites, já não fazem mais sentido. E há uma questão fundamental nisso: o inimigo já não vive a milhares de quilômetros de distância.
O sr. poderia dar exemplos concretos disso?
Os exemplos estão muito presentes. Os grandes eventos esportivos mundiais, como as Olimpíadas, se tornaram altamente militarizados, com equipamentos e tecnologia, e também com pessoal. Em Londres, foram mais de 13 mil militares. As polícias civis estão se militarizando também. Em Fergusson, a resposta da polícia aos protestos contra a morte de negros desarmados foi dada com veículos que haviam acabado de voltar do Iraque. Os drones, usados nas campanhas iraquianas e do Afeganistão, já estão presentes nas cidades. Por último, podemos notar como a França respondeu aos recentes ataques terroristas declarando estado de emergência, com soldados patrulhando as ruas.
O sr. esteve no Brasil. Viu exemplos disso aqui?
O exemplo mais claro desse fenômeno no Brasil para mim são as Unidades de Polícia Pacificadoras, implantadas nas favelas do Rio de Janeiro. Trata-se de uma mobilização militar interna em larga escala com o objetivo de “pacificar” as favelas. Há uma questão essencial, e extremamente política, na definição de quem são os novos inimigos nesse ambiente. Refiro-me à política porque a história do policiamento das cidades sempre foi baseada em uma moral geográfica de que as pessoas teoricamente mais vulneráveis precisavam ser protegidas por segmentos da sociedade “mais civilizados”. É uma questão antiga. Nesta nova fase, estamos vendo isso de forma mais aguda e violenta. Nos Estados Unidos com os negros, na França com os imigrantes árabes, ou no Brasil, com os favelados. Quando o Estado, a polícia, começa a ver como alvos determinadas áreas, raças ou classes, é muito fácil que eles comecem a ver essa mesma população como um inimigo, no sentido militar da palavra.
Foi o que aconteceu em Charlotte e em outros casos de negros desarmados mortos pela polícia dos EUA?
Sim, claramente. Há outros exemplos. Os protestos, como em Charlotte, ou nos encontros do G20, ou no Brasil, têm sido enfrentados pela polícia com incrível violência, com soldados armados como Robocops e atuando sem controle. Há uma retaliação política nessas ações policiais. Há uma corrente de pensamento antiurbano de extrema direita, quase fascista mesmo, de que pessoas de determinadas classes ou áreas da cidade não têm direitos constitucionais, onde as mesmas leis não se aplicam como aos outros cidadãos.
Essa maneira de tratar as populações mais pobres e periféricas não é nova. O que há de diferente agora?
O novo militarismo urbano se utiliza de forma muito direta de antigas tradições, como a de usar a geografia das cidades para deixar as populações mais pobres distantes das mais ricas. O que estamos percebendo agora, no entanto, é que as cidades ocidentais, longe das zonas de guerra, estão recebendo um imenso aparato de controle, vigilância e repressão típicos de zonas de combate. Veículos militares são usados pela polícia, sistemas de identificação biométricos são instalados em áreas civis, helicópteros de combate enfrentando crimes comuns, além de drones. As cidades ocidentais estão cada vez mais parecidas com cidades em guerra.
No livro, o sr. compara Nova York a zonas de combate.
A região em torno de Wall Street e do centro de Manhattan se tornou uma área de defesa militar. Há um design mais amigável, não há a brutalidade estética. Mas não há uma diferença tão grande da fortificada Zona Verde de Bagdá em termos de segurança. É uma cidade mais parecida com Bagdá do que há 20 anos. As pessoas podem não saber, mas todos que passam por ali são monitorados o tempo todo, há um sistema militar de controle e segurança em ação naquela região.
Os desafios de segurança mudaram também, o sr. não concorda?
Sim, e eu concordo que ataques terroristas precisam ser vistos como atos de guerra. E também acho que temos que ter respostas robustas e eficazes ao terrorismo islâmico, a outras formas de extremismo e ao crime de forma geral. Mas, quando começamos a fazer a segurança e o policiamento das cidades como se estivéssemos em guerra, os direitos mais básicos dos cidadãos são duramente ameaçados. Há um processo de criminalizar os direitos mais básicos da democracia, como o de protestar, se reunir ou classificar alguns grupos como potenciais inimigos de forma generalizada. Isso é preocupante. Esse processo se intensificou após o 11 de Setembro. Mas ele já existia antes, e não é uma criação exclusiva da indústria bélica americana ou israelense, grandes beneficiários desse modelo.
No Brasil, o Exército infiltrou um capitão em um grupo de jovens, numa operação que ainda não foi explicada. Acredita que esse tipo de ação vai se tornar mais comum?
Na Inglaterra, a paranoia com o terrorismo permitiu que as forças de segurança criminalizassem de maneira inédita os movimentos sociais e muitos são considerados como “extremistas domésticos”. Grupos contra aquecimento global, grupos antibélicos, enfim, um grande leque de movimentos está sendo alvo de infiltrações de forças de segurança. Muitas vezes esses policiais disfarçados têm adotado estratégias de cunho sexual para se tornarem parceiros de seus investigados e assim ter mais acesso. Há casos de policiais infiltrados que tiveram filhos com integrantes de grupos sociais.
No Brasil e na América Latina, não há tensões coloniais ou migratórias, como na Europa ou nos EUA. O sr. acredita que sua tese também se aplica aqui?
O processo é o mesmo. A guerra às drogas como um todo é um processo de militarização importante dos centros urbanos da América Latina. Nos Estados Unidos, a guerra às drogas levou a um processo de militarização inédito. Os primeiros times da Swat e a primeira vez que helicópteros foram usados de forma militar nas ruas americanas aconteceram nesse contexto. (Os primeiros times da Swat foram criados em Los Angeles depois de uma série de distúrbios raciais na década de 1960 e se popularizaram a partir dos anos 1980 no governo de Ronald Reagan, com a implantação do programa de Guerra às Drogas.)
Quem se beneficia desse fenômeno?
É muito interessante visitar as feiras de segurança que acontecem com regularidade em todos os países do mundo, organizadas pelas empresas bélicas. Elas crescem tanto porque realmente não há limites para o que você pode securitizar em uma cidade. Não há limite para sensores, câmeras, sistemas de vigilância. Com a ideia de inimigos tão diversos e tão próximos, sempre haverá necessidade de ampliar a segurança. As empresas vendem soluções militares milagrosas para problemas que são sociais, não militares. Atuam sobre os efeitos dos problemas, não sobre as causas. Enquanto isso, as cidades crescem com espaços abertos com menos árvores, traçados de ruas que desconsideram aspectos históricos, sempre com o objetivo de vigiar.
Como o sr. vê essa situação nos próximos anos?
Não acredito que isso vá mudar a curto prazo. O grande desafio será encontrar soluções não militares, que não imponham a ideia de que estamos em guerra o tempo todo, para problemas que sempre surgirão nas áreas cada vez mais urbanizadas.