quarta-feira, 28 de maio de 2014

Nuno Ramos: Suspeito que estamos... (definitivo)




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Há tempos venho tentando responder ao convite para escrever nesta página três. O jornal me propôs vários temas, mas nunca me senti preparado para dar conta de nenhum. Então resolvi escrever sobre o que não sei, mas suspeito.
Suspeito que o tema primordial e decisivo da sociedade brasileira sempre tenha sido, e seja ainda, a violência. A vida no Brasil nunca valeu muito. Hoje vale ainda menos. Giramos em torno disso como um animal preso ao poste. Suspeito que o sentimento de agoridade que nos caracteriza faça fronteira com essa violência. Suspeito que precisaríamos, como contraponto, de maior lentidão e inércia.
Perto da violência, suspeito que tudo saia do lugar. Noções como alto e baixo, direito e esquerdo, bem e mal, certo e errado se confundem. Por estar em toda parte, suspeito que esse tema aproxime-se, entre nós, do impensável, e que traga em seu DNA, como esses vírus de mutações constantes e velozes, alguma coisa metamórfica que sempre se transfigura e escapa.
Suspeito no entanto que haja um vínculo estreito entre violência e burrice urbana. Além de morar em São Paulo, andei recentemente por Salvador, São Luís, Manaus, Natal –suspeito que sejam, todas elas, cidades apodrecendo sob o sol. Quarteirões tombados tombando, de um lado; prédios totalmente desconectados da cidade (além de feios), sem cota nem propósito urbano, de outro. Suspeito que entre o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a especulação imobiliária uma curiosa aliança esteja aos poucos se fazendo –ruínas orgulhosas copulando com despautérios azulejados de 30 andares.
Suspeito que cada detalhe desses grandes centros urbanos esteja em situação igualmente trágica. Suspeito, por exemplo, que quase todas as praias em cidades desse porte tenham ficado estreitas, comprimidas contra um muro de arrimo. Como não podemos mais transportar o paredão dos egoístas (a expressão é de Le Corbusier) cem ou 200 metros no sentido da montanha, suspeito que será preciso aterrar o mar para termos novamente praias em escala decente. Suspeito que muitas vezes as piadas que fazemos com os portugueses se apliquem a nós.
Suspeito que a indústria cultural brasileira seja também ela violenta. Assisti a Luciano Huck "modernizando" a ximbica de um espectador. Vi esse espectador chorar, depois mover os braços como se quisesse abraçar os joelhos do apresentador. Suspeito que isso seja cruel. Suspeito que isso seja cretino.
Suspeito que o tropicalismo tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem retorno, e que o ciclo de conquistas democráticas provenientes dessa operação tenha já se encerrado há décadas. Suspeito que perceber o tiquinho de crueldade que haveria em atirar bacalhau nas pessoas não faça mal nenhum ao país; surpreender um ríspido sargento no modo como Ivete Sangalo dança e canta também não. Suspeito que acessar algo de ridículo no "Jornal Nacional" –a falsa intimidade da dupla, seu balé de rostos virando para a câmera, a ruga na sobrancelha de William Bonner, como um aluno estudioso se preparando para começar uma prova, a gostosíssima Patrícia Poeta descrevendo, e ainda mais com esse nome, a chegada de um tsunami ou terremoto de nove graus na escala Richter– seja uma conquista nacional relevante. Suspeito, no entanto, que nessa área caminhemos para uma verdadeira hagiografia, unilateral e coletiva (daí o esforço, essencialmente religioso, de controlar biografias).
Suspeito que a falência do caríssimo estado brasileiro esteja maquiada por uma espécie de chantagem inconsciente –com uma distribuição de renda como a nossa, sem ele seria ainda pior. Suspeito que esse raciocínio seja imobilista e refém de si mesmo, e que tenhamos perdido completamente qualquer medida de eficiência que permita cobrar o Estado como um prestador de serviços (com a morte galopante da Política, suspeito que seja nisso que ele venha se transformando).
Suspeito que a enorme migração do imaginário político para o econômico nos países desenvolvidos tenha ocorrido após uma razoável distribuição de renda via imposto e conquistas sindicais. A tirania da vida econômica sobre a política, entre nós, se deu num quadro social ainda trágico, que solicitaria muito da política. Suspeito que nossa falta de agudeza e imaginação políticas sejam, por isso, eticamente imperdoáveis. Suspeito que imaginação política no Brasil seria a capacidade de transformar o aumento de renda, a partir do Deus-PIB, em aumento de direitos, a partir do Deus-cidadania.
Tenho 54 anos e suspeito que os únicos projetos nacionais com Pê razoavelmente grande que acompanhei sejam o Plano Real e o Bolsa Família. Suspeito que não estejam tão distantes do imaginário desenvolvimentista, árido e autoritário, dos anos 70 e que afinal isso seja pouco para toda uma geração –e se suspeito que estou sendo injusto com um grupo enorme de pequenos projetos que poderia chamar de redemocratização, que me permitem inclusive escrever isto aqui num grande jornal, suspeito também que isso não passe de obrigação cívica.
Por sinal, suspeito que tenhamos perdido completamente a medida dessa obrigação, e que toda a cultura brasileira venha enfrentando fortes problemas de escala. O que é o máximo? O que é o mínimo? De onde o horror não passa? Dessa vez chega? Qual o limite? Mesmo em casos extremos (conectar um pescoço humano a um poste com uma trava de bicicleta, por exemplo), suspeito que nossa medida continue vaga, elástica.
Suspeito que o termo dívida interna, de memória econômica, descreva bem o país –devemos aos deserdados, aos desocupados, aos desmantelados, aos desabitados, aos destrambelhados e aos desmemoriados. Devemos renda, saúde, educação, claro, mas também avencas, bueiros, ruas, parques, chicletes, remédios tarja preta; devemos água potável, brinquedos, lanternas, poços artesianos; devemos livros, trufas, CDs, lentes de contato, filmes de arte, óculos escuros, museus, proteína, alface. Devemos aos pobres, aos índios, aos pretos e aos pardos, mas também aos albinos, aos esquizofrênicos, aos insones, aos priápicos, aos tiozinhos de padaria, aos mitômanos e aos sexualmente indecisos. Devemos demais aos cães atropelados, prensados contra o "guard-rail". Devemos aos palhaços de bufê infantil e aos papais noéis de shopping. Suspeito que nossa dívida interna seja impossível de descrever.
Suspeito que deus não exista –ou não tenha paciência para nenhum dos assuntos de que lembrei aqui.
Suspeito que a risada, o pôr do sol, o hino à alegria e o acorde maior estejam sendo de alguma forma privatizados. Suspeito que Paulo Coelho, o padre Marcelo Rossi e o bispo Edir Macedo sejam três faces de uma mesma e última privatização –a do infinito. Suspeito que estatizar essas coisas seja ainda pior.
Suspeito que a Portuguesa vai falir, acabar. Suspeito que Galvão Bueno não vai se aposentar nesta Copa, nem na próxima.
Suspeito que estamos fodidos.
NUNO RAMOS, 54, é artista plástico e escritor
*

terça-feira, 27 de maio de 2014

Mordida na banana

27 de maio de 2014 | 2h 06

*Xico Graziano - O Estado de S.Paulo
Quando o lateral Daniel Alves, jogador do Barcelona, deu uma mordida naquela banana atirada dentro do campo de futebol, esconjurando com seu inusitado gesto a intolerância humana, todos aplaudimos. Depois, confesso, meu pensamento de agrônomo se desviou para outro assunto: por que, afinal, a coitada da fruta carrega essa maledicência associada ao preconceito racial? Difícil explicar.
A família botânica das musáceas origina-se nas regiões tropicais do Sudoeste Asiático. A Índia lidera o ranking mundial da produção de bananas, seguida por Filipinas, China, Equador e Brasil. Certamente os cachos da Musa spp têm sido descascados pelos peludos símios naquelas terras de olhos puxados desde seu surgimento no planeta Terra. Acontece, porém, que o preconceito racista se originou aqui, no Ocidente, onde os macacos, como os nativos do Brasil, só conheceram uma banana após o Descobrimento. A fruta, afinal, veio trazida pelos portugueses.
Um macaco-prego ou um bugio gostam mesmo é de coco babaçu ou de caroço de jerivá, ambos frutos de palmeiras nativas. Mas pegou a fama de a exótica banana ser seu alimento predileto. Vá entender. De forma semelhante, ninguém jamais explicou ao certo por que Carmen Miranda, ao se exibir para plateias norte-americanas, se empetecava da cabeça aos pés com cachos e folhas, cantando seu inesquecível refrão "yes, nós temos banana". Os gringos adoravam.
Curioso. A fruta serve também aqui, no Brasil, para figuras de linguagem inusitadas, algumas depreciativas. "Plantar bananeira", em certas regiões, como em Araras (SP), minha terra natal, significa ficar de ponta-cabeça, ou seja, virar-se com as pernas para cima. O sentido da expressão dá a entender, obviamente, que nas plantações de banana tal prática é comum. Ledo engano. Na formação dos pomares, as mudas, chamadas perfilhos, são colocadas dentro de profundas covas sempre em sentido normal, com as raízes para o solo e a gema apical para cima. Ora, como se explica, então, essa expressão popular? Jamais encontrei respostas.
Noutro caso, a fruta serve ao raciocínio irônico. Comumente as pessoas, numa molecagem, quando querem desdenhar algo, fazem um conhecido sinal com os braços entrelaçados, cruzando o punho com o antebraço: "Aqui, ó, uma banana para você". Soa, claro, como se a fruta simbolizasse algo rejeitável. Pior de tudo, especialmente aos olhos dos bananicultores, é alguém dizer que uma coisa qualquer, por barata na compra, está com "preço de banana". Imaginem como se chateiam os agricultores do ramo. É como se nada valessem.
Não tem sido fácil a vida dos bananicultores nacionais. Além da desvalorização da fruta no mercado, doenças terríveis têm ameaçado as plantações há tempos. A mais recente e preocupante delas, a Sigatoka negra, causada por um fungo, chegou ao Brasil em 1998, trazendo pesadelos ao bananal. Técnicos apressados chegaram a afirmar que estariam liquidados os pomares e seria decretada a extinção das lavouras. Exagero. A boa agronomia, embora arduamente, está conseguindo enfrentar mais essa peleja patogênica. Sorte dos consumidores.
Fruta mais consumida no mundo, unindo sabor, sustância e saúde, a banana é adorada pelos esportistas, pois estes creem que suas benesses combatem as cãibras. É verdadeiro. A falta de potássio no organismo leva os músculos a se contraírem e uma banana média supre 30% das necessidades diárias de potássio do corpo humano. Estudo realizado nas Filipinas indica, ademais, que ingerir duas a três bananas por dia combate a depressão e melhora o humor das pessoas. O efeito benéfico atribui-se ao elevado conteúdo de triptofano, responsável pela sensação de bem-estar.
Mal-estar. Nesse estado, apreensivos, se encontram atualmente os bananicultores do Vale do Ribeira (SP), tradicional região produtora da mais gostosa fruta encontrada na quitanda. O grande temor desta vez vem do Equador. Ou melhor, da caneta do governo brasileiro. Acontece que, pressionado pelos interesses de grandes empresas norte-americanas, o Ministério da Agricultura cogita de autorizar a importação da fruta oriunda desse país. Se concretizada, a medida poderá pôr em risco a produção da banana nacional. Razões da competitividade.
Apenas cinco multinacionais controlam a produção e o comércio internacional das excelentes bananas produzidas no Equador. Trabalham com elevada tecnologia, alta escala, tudo mecanizado. O padrão impecável de qualidade permitiu conquistar o mercado da Europa e dos EUA, locais onde nada se produz de banana por causa do frio do inverno. Mas suas exportações caíram em razão da crise econômica lá fora e começou a sobrar banana no mundo. Azar do Brasil.
Pelas regras do comércio internacional - nosso próprio país lutando há décadas para derrubar as barreiras do protecionismo agrícola -, sabe-se ser complicado fechar fronteiras. Normalmente se utiliza uma saída técnica para impasses dessa natureza, invocando problemas fitossanitários, ou seja, a ameaça, que sempre existe, da introdução externa de patógenos (fungos, bactérias, vírus) nas lavouras internas. Tenta-se, assim, não escancarar as portas das importações, dado o perigo de elas arrasarem a produção local. No caso brasileiro, os produtores ainda padecem de uma desgraça apelidada de "custo Brasil": elevada carga tributária, logística deficiente, legislação trabalhista, burocracia. Concorrência desleal.
Nesse governo, que nunca decide nada, resta uma alternativa: ao contrário do Daniel Alves, se essa banana do Equador aparecer, que ninguém a morda. Seria um boicote do consumidor em defesa do emprego no campo.
*
AGRÔNOMO, FOI SECRETÁRIO DE AGRICULTURA E SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO
DE SÃO PAULO.
E-MAIL: XICOGRAZIANO@TERRA.COM.BR

domingo, 25 de maio de 2014

Pano pra manga, por Guaracy Mingardi - O Estado de S. Paulo

Troca de nome por numeração nas fardas de PMs revela a falta de confiança que persiste entre policiais e a sociedade

25 de maio de 2014 | 3h 11

Guaracy Mingardi - O Estado de S. Paulo
Em um dos livros de Leonardo Padura, um policial experiente e desiludido tem uma fala que revela um dos principais dilemas de sua profissão: "Não distribuo comida, recolho merda". Com essa frase de efeito, tentava explicar por que ele, e por inferência seus colegas, não eram bem vistos pela maioria da população.
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A polícia é um órgão do Estado que, apesar de exercer uma atividade indispensável, tem como função dizer "não" e reprimir pessoas que pratiquem atos ilegais. E como a maioria dos adultos já foi multada, advertida, detida ou teve algum conhecido preso, existe preconceito social contra o trabalho policial. Portanto, não é difícil explicar a desconfiança de parte da população contra os órgãos policiais. As únicas coisas que variam de um país para outro são a porcentagem de pessoas que não confiam na instituição e o grau dessa desconfiança.
Alguns países conseguiram diminuir o afastamento polícia/cidadão após anos de trabalho intenso. Parte disso se deve a campanhas bem-sucedidas de marketing, mas propaganda sozinha não resolve a situação. A melhora nas relações só foi possível nos locais em que a polícia mostrou que é competente e age estritamente dentro da lei. O que não é o caso brasileiro.
Em nosso País, o grau de impunidade nos casos de homicídio é altíssimo, e um número cada vez maior de pessoas nem se preocupa em dar queixa dos crimes que sofrem no cotidiano. Segundo a Pesquisa de Nacional de Vitimização feita pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), 81% das vítimas não registram queixa ou chamam a polícia quando ocorre o crime. Aparentemente, não vale a pena.
Quanto ao emprego estrito da legalidade, o Brasil é um dos países em que a população mais desconfia dos métodos utilizados pelas polícias. Pesquisa recente, feita pela Anistia Internacional, revelou que 80% dos brasileiros têm medo de serem torturados em caso de prisão. A pesquisa foi feita em 21 países de todos os continentes, com 21 mil entrevistados. E o pior, do nosso ponto de vista, é que o medo de tortura existe em todos eles, mas o Brasil é o recordista, o país onde mais pessoas são atingidas por esse temor.
Outro tipo de pesquisa que mostra o tamanho da encrenca é o Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil). Realizado periodicamente pela Direito-GV em sete Estados brasileiros, o estudo procura quantificar o sentimento da população em relação ao Judiciário brasileiro. Um dos itens pesquisados, o grau de confiança na polícia, mostra que apenas 31% das pessoas confiam nela. Para piorar a situação, a maioria dos que confiam são indivíduos mais velhos, com maior escolaridade e melhor situação financeira. Portanto, quem não confia são os jovens despossuídos das periferias brasileiras, exatamente a parcela da população que vai às ruas protestar contra a Copa, as passagens de ônibus, problemas urbanos, etc.
Nas manifestações estão ocorrendo cada vez mais casos de vandalismo e depredação por parte dos Black Blocs, que são e devem ser reprimidos pela polícia, porém dentro dos princípios da legalidade e do uso legítimo da força - o que nem sempre ocorre. Já foram registrados vários casos de excesso por parte de policiais, que dificilmente são punidos pela Polícia Militar.
Para complicar a situação, um grupo especialmente formado para agir nas manifestações, a Tropa do Braço, constituída por policiais militares praticantes de artes marciais, tornou mais difícil a identificação de seus membros que abusarem da violência. As tarjetas de identificação que serão usadas pela chamada "Tropa Ninja" terão, no lugar do nome do soldado, o RE, que corresponde ao número de identidade do policial e a sigla da unidade a que pertence. Assim, em vez de decorar apenas um nome, o indivíduo que quiser registrar queixa por violência terá de memorizar usa série de números - o que é muito mais difícil. Imagine o manifestante, no meio de uma correria e apanhando pra valer, tendo tempo de decorar uma série de nove dígitos. Alguns policiais com quem discutimos o tema acreditam que é um avanço, já que em algumas manifestações era comum ver policiais sem identificação. Se isso é verdade, é um avanço bem pequeno.
Na realidade, o problema central é a falta de confiança. Se a polícia tivesse mais credibilidade, os jovens com queixas legítimas poderiam tentar anotar os números, mas como supõem que a instituição irá varrer os abusos para debaixo do tapete, nem vão se dar ao trabalho. E na hora em que ocorrer um problema grave, a PM, se interessada em descobrir o culpado, vai ter uma enorme dificuldade em identificá-lo.
A Polícia Militar precisa parar de agir corporativamente e pensar na integração com a sociedade. Acabar com a atitude que leva a aforismos como "paisano é bom, mas tem muito", comum entre setores da instituição. Enquanto tentar esconder seus esqueletos, a população vai se manter arredia, receando as ações policiais e seguindo o preceito de Shakespeare: "A desconfiança é o farol que guia o prudente."
GUARACY MINGARDI É DOUTOR EM CIÊNCIA , POLÍTICA PELA USP, MEMBRO DO FÓRUM , -BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA