segunda-feira, 4 de março de 2013

Quem dera fosse simples assim


MÔNICA MANIR
Entrevista com António Damásio, neurocientista e diretor do Instituto do Cérebro e da Criatividade do Sul da Califórnia
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Complexidade do cérebro dificulta prognósticos para desvendá-lo - Bloomber/Getty Images
Bloomber/Getty Images
Complexidade do cérebro dificulta prognósticos para desvendá-lo
Não sem razão, António Damásio se anima com a última sobre o cérebro: o governo americano pretende investir, nos próximos dez anos, pelo menos US$ 3 bilhões no mapeamento da nossa massa cinzenta. Obama fez o anúncio, e agora o Congresso precisa aprovar o que está sendo chamado de Brain Activity Map. Mas a empolgação maior do renomado neurocientista português, nesta entrevista que deu ao Aliás a partir de Los Angeles, foi com seus próprios projetos.
Ele tem pesquisado, por exemplo, sobre a base dos sentimentos, como se pode atestar em recente estudo seu publicado na revista Nature Reviews Neuroscience. Também quer saber de que forma o cérebro pode apreciar e gerar música, e para isso tem uma equipe no Brain and Creativity Institute, criado por ele e por sua mulher, Hanna Damásio (também neurologista), na Universidade do Sul da Califórnia. Numa multiplataforma de ação - porque tudo hoje é multiplataforma -, ainda finaliza um livro a respeito da evolução da vida e da criação das culturas. “É a maneira como a cultura é construída no seu princípio a partir de aspectos biológicos, nomeadamente aspectos que têm a ver com cérebro”, explica. Damásio, em suma, está a revolucionar de novo, a inverter lógicas, a aprimorar conceitos, como o de que a razão não é tão pura como a maioria de nós pensa ou deseja, mas enredada - para o melhor e para o pior - pela tal base de sentimentos.
Se uma não é água nem a outra é azeite, então que razão e emoção sejam vistas como ingredientes da mesma cepa. Isso ele demonstrou em O Erro de Descartes, publicado em 1995 a partir da observação de pacientes com lesão cerebral e lançado aqui pela Companhia das Letras. Depois vieram O Sentimento de Si, Ao Encontro de Espinosa, E o Cérebro Criou o Homem e O Mistério da Consciência. Radicado há quase 40 anos nos EUA, o lisboeta laureado com os prêmios Pessoa e Príncipe das Astúrias deve vir ao Brasil em junho, quando participará do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento. Damásio por vezes tropeça na língua-mãe, como se percebe na entrevista a seguir, focada no destino das pesquisas cerebrais. Também usou a palavra “nós” quando explicava sobre sua mudança para os EUA. Por isso foi perguntado sobre família e filhos. “Não tenho filhos”, diz. “Meus filhos são os livros.” Todos eles invariavelmente dedicados a Hanna.
O governo dos EUA espera que o mapeamento faça pelo cérebro o que o Projeto Genoma fez pela genética. O senhor acha pertinente comparar um projeto com o outro?
Acho pertinente comparar o projeto do genoma com o projeto do mapeamento do cérebro porque ambos têm muito a ver com descobrir essenciais de sistemas biológicos fundamentais. Há no entanto uma grande diferença: o programa do genoma, comparado com o programa do mapeamento do cérebro, é relativamente simples.
Quais as maiores dificuldades a enfrentar no mapeamento do cérebro humano?
A maior dificuldade é o fato de o cérebro humano ser extremamente complexo. Por exemplo, os neurônios estão combinados em regiões e sistemas. E são vários bilhões de células, que fazem conexões entre si da ordem dos trilhões. Para que as células funcionem, precisam de uma grande variedade de moléculas, de transmissores químicos, etc. E essas moléculas são também enormemente variadas e levadas a funcionar através da ação de um grande número de genes, que têm diferenças a apresentar em vários componentes do cérebro. O cérebro é ainda o gerador do comportamento. Ele gera nossas ações motoras e aquilo que se passa na nossa mente. De modo que a complexidade de que estamos a falar é de fato extraordinária, como não há nenhuma outra comparável em termos de biologia.
Os procedimentos de pesquisa do cérebro são necessariamente invasivos?
Na maior parte dos casos, não. O mapeamento que se faz com scanners de ressonância magnética não é invasivo. A eletroencefalografia não é invasiva. Há numerosas maneiras de estudar o cérebro que não levam de todo à invasão do sítio biológico. E sempre que há qualquer risco para o ser humano, procura-se uma forma de fazer o trabalho em animais de pesquisa.
Qual a importância da nanociência nesse estudo?
Há muitos níveis de estudo. E, quando se pesquisa aquilo que se passa numa célula nervosa, há aspectos muito pequenos, microscópicos. Mas não são microscópicos, são ultramicroscópios e tem a ver com o nível nano de estrutura física. É aí que a nanociência tem seu papel.
Acredita que uma década será tempo suficiente para esse mapeamento?
A resposta é não. Haverá um certo mapeamento, mas não é possível de todo fazer o mapeamento completo. É preciso avançar com o projeto para que haja energia para depois continuar. E não é possível fazer um prognóstico porque tudo depende de certos aspectos ainda não descobertos, que se podem revelar muito complexos.
Por que a proposta de fechar numa  década? Em janeiro, a União Europeia anunciou um megainvestimento no cérebro que também se estenderia por dez anos.
Se apresentassem um programa para sete anos, pareceria curto demais. E se apresentassem para 20 anos, quem vai esperar 20 anos por um resultado? A década não tem nada a ver com a realidade. É puramente uma forma de apresentar o problema.
De imediato, pensa-se nos portadores de Alzheimer e Parkinson como os maiores beneficiários das pesquisas. Essas doenças, ao lado do câncer, são os grandes males do século?
É verdade que esses portadores serão grandes beneficiários. Espera-se. Mas, quando você pergunta se Alzheimer e Parkinson são os grandes males do século, juntamente com o câncer, há mais outras doenças para além. Alzheimer e Parkinson são doenças terríveis e cada vez mais frequentes porque a população vai envelhecendo, não é? Mas há também os acidentes vasculares cerebrais, a depressão e a drug addiction. Como é que se diz isso em português?
Dependência de drogas.
Sim, dependência de drogas. São enormes males também, que só podem ser tratados se soubermos seus aspectos cerebrais.
Acha que está ocorrendo uma banalização da neurociência, como se ela pudesse explicar de questões biológicas a econômicas?
Há um enorme interesse em neurociência em todos os locais onde se faz ciência avançada, mas o programa é agora mais intenso porque as pessoas começam a perceber que a neurociência pode trazer enormes vantagens para resolver problemas da humanidade. É um componente da explicação daquilo que é vida, daquilo que é comportamento humano. Mas não explica tudo. É preciso ser posta em contexto, pensar como a neurociência se articula com a psicologia tradicional, com a filosofia, com o entendimento das relações sociais.
Por que a neurociência ganhou tanta notoriedade nos últimos tempos?
Porque estamos todos muito corretamente fascinados com aquilo que é nossa mente, nosso comportamento, e a mente e o comportamento são resultado do funcionamento do cérebro. Portanto, quando conhecemos em mais pormenor aquilo que está a passar no cérebro, estamos também a conhecer melhor algumas das coisas que se passam em nosso comportamento.
Todas as emoções têm um mecanismo neural?
Sim, é evidente que sim.
E a fé?
A fé não é uma emoção. A fé é um estado de crença que tem um componente emocional, mas que não se limita a uma emoção nem a mecanismos neurais.
O senhor é um estudioso da memória. Inteligência e memória estão necessariamente relacionadas? Não raro são vistas inclusive como sinônimos.
Muitas vezes são vistas como sinônimos, mas não deveriam ser. Porque se pode ter uma memória extraordinária e não ser de todo inteligente. Mas, quando se pensa na inteligência e na criatividade, é necessário que haja uma boa memória para fornecer dados. A combinação de diferentes memórias permite a criação de novas ideias, novos produtos, que é o mais importante em matéria de inteligência.
A morte encefálica é tida hoje como o critério definitivo para se estabelecer o fim da vida. O senhor acredita que novas descobertas relativas ao cérebro possam mudar esse parâmetro?
A morte encefálica muitas vezes acarreta cessação de vida. Mas há numerosos casos em que é possível continuar a vida mesmo após ter cessado a vida do cérebro, no sentido normal do termo. Com novos estudos sobre cérebro, não só é possível saber mais sobre o seu funcionamento como é possível ter novos critérios para esse problema. Isso é uma coisa que acontece com a ciência à medida que progride. Critérios baseados em ciência mais antiga muitas vezes estão corretos, mas outras vezes é preciso que sejam revistos.

Sobre baratas e homens


‘A quem interessa perpetuar a violência?’ Filha de Rubens Paiva volta na história e pede julgamento dos que assassinaram seu pai e torturaram sua família

23 de fevereiro de 2013 | 16h 36

VERA PAIVA*
Em férias do primeiro colegial, segui para Londres, para a casa de Fernando Gasparian, industrial exilado e melhor amigo do meu pai. Uma manhã, na entrada da escola de inglês, colegas me mostravam as manchetes de jornais europeus: “Você viu?” Era fevereiro de 1971. Na capa, a notícia da prisão de meus pais e minha irmã de 15 anos. Estava escrito: “Rubens Paiva foi preso, torturado e, dizem, jogado ao mar”. Escondiam há dias o que havia acontecido... para me proteger, ou sem saber o que falar. Passei semanas entre Londres e Paris, recebendo olhares de compaixão e a solidariedade de exilados, também sem saber o que dizer a uma menina, órfã da ditadura, talvez... Mais uma. Gilberto Gil me consolou na casa de Violeta Arraes. No Brasil, temiam que eu fosse presa no aeroporto. Só voltei para a família arrasada e para a escola no final de março.
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Eunice, Rubens Paiva, d. Ceci Paiva (mãe de Rubens), as filhas Eliana, Ana Lúcia, Beatriz e Marcelo - Álbum de família
Álbum de família
Eunice, Rubens Paiva, d. Ceci Paiva (mãe de Rubens), as filhas Eliana, Ana Lúcia, Beatriz e Marcelo
Recorro a outras cenas e perguntas, um recurso metodológico precioso na vida acadêmica, no calor da confirmação pela Comissão da Verdade de que Rubens Paiva foi torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi.
Passamos décadas sem saber como explicar a ausência do pai ou poder construir um luto. “Desaparecido”. Cruelmente, ficava posto em nossas mãos decidir se ele tinha morrido ou não, e quando. Foi só em 2011, quando o livro Segredo de Estado (de J. Tércio) detalhou como foi sua prisão e morte, com base em boa pesquisa jornalística e documentos agora validados pela Comissão da Verdade, e uma exposição itinerante sobre a história de Rubens Paiva foi inaugurada, que descobrimos - família e amigos vivos - como cada um viveu seu luto em anos diferentes.
Milhares de famílias tiveram e ainda têm essa experiência desde os anos de chumbo. Há muito deixamos de ser “um punhadinho de gente”, estereotipada como “subversiva”, “terrorista” ou “bandida”. Pessoas com ou sem partido, de todas as cores, etnias, religiões, 42 anos depois ainda têm seus parentes encarcerados arbitrariamente, torturados, mortos e desaparecidos “em resistência” à ação policial ou pela ação de bandidos na guerra civil que, de fato, só se generalizou quando humanos viraram baratas. Sim, baratas.
Há dez anos, a convite de Serginho Groisman, fomos debater com o cel. Erasmo Dias, que, como o delegado Fleury, assombrou minha geração. Perguntei: “Como o senhor se sente, deputado eleito e usufruindo das nossas conquistas democráticas? Como avalia sua entrada na PUC jogando bombas em mulheres grávidas, com cavalos em sala de aula?” Lutávamos pelo direito a eleições livres, por democracia, pelo nosso direito de discordar. A resposta do coronel, vaiada pela jovem plateia do programa Altas Horas: “Eu era autoridade. Tinha que fazer valer o princípio de autoridade, não importa se eram meninas comunistas ou baratas, o que fosse, tinha que reprimir”. Imagens de época exibem Erasmão na TV com a prova da “subversão terrorista”: faixas de papel-manilha rosa pintadas à mão pedindo liberdades democráticas e justiça. “Era isso a subversão?”, espantam-se os que não viveram esse tempo.
Nos anos seguintes, enquanto a democracia se reconstruía (1980-1990), adeptos da linha dura cultivaram cuidadosamente a noção de que “direitos humanos são para bandido”. Ou, como diria Paulo Maluf, “há humanos com direitos e humanos sem direitos”.
Posições mais ou menos elaboradas de como produzir um mundo melhor sempre dividiram a humanidade. O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos define que as pessoas nascem livres e iguais em dignidade, com direitos inalienáveis que fundamentam a liberdade, a justiça e a paz no mundo. Parecia evidente a noção de dignidade no momento de sua proclamação por uma Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1948, horrorizada com a verdade e encarando a memória do nazifascismo e as cenas de Hiroshima e Nagasaki. Logo a Guerra Fria deixou clara a coexistência histórica, mais ou menos tensa, de diferentes noções de autonomia e dignidade associadas à humanidade.
Seguiram-se outras perguntas: por que não mulheridade como sinônimo de humanidade? A escravidão continuada no racismo é liberdade? A destruição da natureza e o consumismo desenfreado são sinônimos de dignidade? Heterossexualidade é a única liberdade? Boaventura Santos, propondo o uso emancipador dos direitos humanos, alerta que a humanidade que nos iguala acumula diferentes tradições e noções de dignidade: as herdadas do judaísmo, do cristianismo e outras tradições culturais, como o darma, hindu, ou a umma, da tradição islâmica, que devemos considerar no diálogo democrático.
Retomando as perguntas e revirando cenas: que noção de dignidade você gostaria de deixar como legado no Brasil para seus netos? Sintetizo, buscando o debate: um país onde se viva em paz, mais justo, onde todas as crianças possam crescer educadas e com saúde, brincar nas ruas como um dia foi possível, afirmar sua singularidade, debater livremente suas ideias, resolver pacificamente suas diferenças, ganhar e perder sustentando com dignidade a luta diária.
Provoca-lhe revolta diária a guerra civil brasileira que mata mais que na Síria e no Afeganistão? Você repudia os bandidos que, em guerra e armados (pelo Estado e não) copiam décadas de violência de Estado impunes, prendem, torturam, matam e desaparecem com crianças, jovens, adultos e velhos? Trata-se de um genocídio, se analisamos os números de mortos entre jovens negros e entre os mais pobres, indígenas ou homossexuais (às vezes basta “parecer um”). Fica horrorizado/a quando lê sobre o assassinato brutal de uma mulher corajosa, juíza carioca que investigava policiais corruptos, assassinos, torturadores? Continuo: aceitaria que seus filhos/as e netos/as fossem amigos de um torturador?
Como filha de Rubens e Eunice Paiva, respondi à jornalista na semana retrasada: se encontrasse os que torturaram minha família há 42 anos, gostaria que fossem julgados, com direito à defesa, como exige a Constituição de 1988, conhecida como a dos Direitos Humanos, essa que ajudamos a construir, pelos quais meu pai morreu e os quais minha mãe viveu defendendo.
Direito de bandidos? Baratas? Defenderei que usufruam o que negaram a meu pai e três gerações de idealistas que, com suas noções diversas de liberdade e dignidade, lotaram prisões clandestinas ou oficiais, submetidos às leis de exceção e à ação extraoficial de um Estado ditatorial e torturador.
Muitos militares e trabalhadores, empresários e fazendeiros, religiosos, muitos editores, jornalistas, professores e estudantes, médicos, juízes e advogados apoiaram abertamente a ditadura civil-militar. Muitos outros, não. Entre eles, gente nos quartéis.
Civis gostaram bastante que parte dos militares, convencidos pela ideologia de segurança nacional em tempos de Guerra Fria e cheios de ambição pessoal pelo poder, representassem seus interesses (nacionais e internacionais) sem ter que mostrar a cara, sem ter que enfrentar o debate apaixonado e democrático de hoje. Outros se arrependeram rapidamente, porque não concordavam com a redução de pessoas a baratas, apesar de temerem pelos interesses que governo eleito e movimentos sociais da época expressavam - acesso ao trabalho digno e decente, educação e terra para todos e, como defendia meu pai desde a juventude e como deputado, que o petróleo achado em território brasileiro - tão disputado nos últimos anos em tempos de pré-sal - fosse usado em benefício dos brasileiros e não de um punhado de multinacionais.
Ações ditatoriais foram “um mal necessário”, como justificou em 2010 o ministro Marco Aurélio Mello? Votos como o dele sustentaram no STF a Lei da Anistia vigente, contestada nas cortes internacionais por deixar torturadores impunes e manter vivo seu exemplo. Temia-se o quê, a memória comprometida com o “mal necessário”? Alemães convivem com a verdade dos museus preservados do Holocausto; americanos, com a memória de Hiroshima e Nagasaki; inúmeros países dão conta de julgamentos pós-comissões da verdade, que devolveram a países como Argentina, Chile, Uruguai e África do Sul o direito de ensinar às novas gerações que desse mal nunca deveríamos necessitar. Já no Brasil... A quem interessa perpetuar essa cultura da violência que divide o mundo entre homens e baratas?
“O que você faria se encontrasse os torturadores de seu pai?” Essa é uma pergunta que pode ser feita a qualquer um no Brasil de hoje. Eles estão impunes e soltos, dos dois lados da guerra civil, reproduzindo essa cultura iniciada na escravidão e perpetuada nas ditaduras à qual sempre foi possível resistir: d. Paulo Evaristo Arns, conosco pelos direitos humanos, resistia ao setor de sua Igreja que sempre teme mudanças; os empresários José Mindlin e a família Ermírio de Moraes e o banqueiro Walter M. Salles se recusaram a contribuir para a caixinha de empresários que financiava os horrores dos centros de extermínio de opositores, como mostra o documentário de Litewski, Cidadão Boilesen.
Funcionários da reitoria nos entregavam ao Dops e essa semana justificaram, inventaram, que “iam nos acompanhar”. Muitos mais foram solidários, como quando o futuro senador Romeu Tuma (lembram?) nos interrogava na Polícia Federal. Falando sobre o movimento estudantil que defendíamos e a democracia que construímos, o delegado Tuma perguntava: “Seu pai faz o quê? Onde ele está?” Diante de minha resposta de que ele saberia melhor, respondia: “Ora, está lá em Cuba com outra família...”.
Essa mentira, humilhante e torturante, foi sepultada pela Comissão da Verdade. Espero que as novas gerações pensem com sua cabeça, enfrentem a memória histórica, recusem a mentira e teorias autoritárias do “mal necessário”. No mundo que desejo construir para meus netos, militares e policiais deixariam de proteger a cultura da tortura, e a violência não ficaria impune pelas mãos de operadores de direito; os que têm algo a dizer perderiam o medo, usariam o direito ao sigilo garantido pela Comissão da Memória e da Verdade para trazer a paz e fazer o bem. Repito o que minha geração, encurralada pelo Erasmão no Viaduto do Chá em maio de 1977, gritava pacificamente: “Hoje, consente quem cala”.
*VERA PAIVA É PROFESSORA DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E FILHA DO DEPUTADO RUBENS PAIVA

Ecossalsichas



Como a Rede de Marina Silva pretende fazer política livre, leve e solta em chão de salsicharia?

23 de fevereiro de 2013 | 16h 45
RENATO LESSA*
A máxima de Bismarck é surradíssima, mas surrados também parecem ser os tempos que correm. Segundo o prócer da unificação alemã, salsichas e leis são coisas tais que não se recomenda saber e ver como são feitas. Verdade seja dita, muito tem sido feito com relação à qualidade das salsichas. E não é de agora: os judeus portugueses, sob o risco da Inquisição e para afastar suspeitas sobre sua real condição, faziam-nas recheadas de pão e alho, e não de carne de porco. Por fora, salsichas, digamos, bismarckianas, por dentro, deliciosas “alheiras”, acompanhadas da sempre reconfortante sensação de não se estar a comer coisa impura.
Ao lembrar da iguaria luso-judaica, e da dialética de pureza/impureza ali manifesta, sou assaltado pela suspeita de que Abraham Lincoln, segundo Spielberg, pode ser considerado uma espécie de alheira da política. Com efeito, a substância de sua política - a 13ª Emenda à Constituição norte americana, que proíbe a escravidão - veio acompanhada de invólucros e práticas não totalmente estranhos às práticas legislativas brasileiras contemporâneas. Mas, será que alheiras políticas são duráveis? Será que é coisa segura pôr o invólucro a serviço da substância? Por vezes, é inevitável que se o faça: se o que está em questão é a proibição da escravidão, por exemplo, que se comprem deputados para tal. Não se trata, pois, de moralismo abstrato, mas de risco de passagem a um padrão de cultura política de predação, segundo o qual as chances da virtude dependem da homenagem que está disposta a conceder aos vícios. O passo seguinte pode ser representado não mais pela exigência de realismo, por parte das virtudes, mas pela aberta negociação conduzida pelos vícios entre si mesmos. Esse piso passa, então, a determinar as condições de “realidade”: aqui está, por efeito de gravitação, o “grau zero” da política, o terreno a partir do qual tudo começa.
Seja lá como for, e retornando à complementaridade bismarckiana entre leis e salsichas, a impressão que se tem é a de que, no que diz respeito à manufatura legislativa, nada de comparável ao crescente cuidado com as iguarias embutidas tem sido feito. Isso a tal ponto que a metáfora, a rigor, não mais se sustenta. Salsichas, é forçoso dizê-lo, hoje são submetidas a processos de controle de qualidade superiores em regra aos que vigoram na dinâmica dos Parlamentos.
As recentes eleições para a direção do Congresso e para a liderança do PMDB na Câmara de Deputados bem atestam a percepção do estadista da unidade alemã. Com efeito, dada a complexidade culinária crescente e a natureza dos ingredientes envolvidos, nada melhor do que a supervisão de mestres salsicheiros de indisputada competência. Em jargão asséptico e politológico, trata-se de valorizar a “experiência”, um juízo, na verdade, comprometido com os valores aí implicados, já que não se põem em discussão os fundamentos de tal “experiência”. É como se “experiência” na política fosse algo que se acumula com o tempo e com o depósito de materiais naturais, e que não fosse ela mesma resultado de crenças, que nada têm de natural, a despeito de sua naturalização e de sua resiliência. Nesse sentido, a salsicharia de Bismarck tem a consistência de uma paisagem: passamos por ela e ela segue ali, sempre inteira e idêntica a si mesma.
Pois bem, a senadora Marina Silva acaba de lançar um movimento que visa à constituição de um novo partido, designado como Rede, no qual o tema da sustentabilidade ocupa lugar central. É injusto, no mínimo, dizer que a desconversa sobre ser de direita ou esquerda, de oposição ou de situação, e que devemos seguir em frente, assemelha-se à esperteza de Gilberto Kassab, cujo partido pré-abocanha postos ministeriais. De certo, há lá sinais de confusão programática e de vulnerabilidade a oportunistas. A própria ideia de reservar 30% das vagas nas listas partidárias para independentes soa como interessante, não fosse a lei eleitoral fundada no voto personalizado. As chances do indivíduo independente, sem máquina e sem arrecadadores de campanha, são modestas. Se fosse o caso de listas partidárias bloqueadas, e a depender da posição dos independentes nas mesmas, a coisa poderia resultar em algo, embora eu não saiba bem no quê.
A ideia de rede não é panaceia. Na verdade pode ser um mito encobridor da nossa imensa perplexidade diante da livre operação da salsicharia à antiga, assim como de nossas confusões. No entanto, pode soar como pouco honesto opor à iniciativa “pós-partidária” um arrazoado realista, sobretudo por quem tem por tal realismo pouca ou nenhuma estima. A despeito disso, há lugar para a inquirição séria: a que vêm os proponentes da iniciativa? Como imaginam estabelecer suas práticas de política líquida - livre, leve e solta - em meio ao chão de fábrica da salsicharia? O partido da sustentabilidade, se a coisa for séria, não poderá deixar de conceber e de mobilizar a chave da insustentabilidade dos padrões da culinária política vigente. Há, pois, um dever de elucidação. Do contrário, tudo não terá se limitado à modificação oportunista no âmbito da concorrência habitual.
*RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA E PESQUISADOR VISITANTE NO CENTRO INTERNAZIONALE PRIMO LEVI, EM TURIM