sábado, 1 de dezembro de 2012

Um homem é homem



DE SÃO PAULO
Eugênio Hirsch, nascido na Áustria, mas vivido na Argentina e, mais tarde, no Brasil, era um artista gráfico de prestígio mundial, responsável pelos catálogos de alguns dos museus mais importantes da Europa e capista de grandes editoras internacionais.
Era um mestre na arte visual. Sua capa para a edição brasileira de "Lolita", publicada pela antiga Civilização Brasileira, ganhou o prêmio internacional e foi consagrada pelo próprio Nabokov, que a considerou a melhor interpretação de sua personagem, superando até mesmo o filme de Stanley Kubrick baseado em seu romance.
Durante os anos em que viveu no Rio, casou-se com uma negra escultural da qual ele nem sabia o nome, tratando-a simplesmente de Azeitona, pela cor aveludada de sua pele extraordinária.
Um amigo perguntou se era verdade que ele havia se casado com uma negra. Hirsch respondeu na bucha: "Não, eu me casei com uma mulher". Este caso teve um replay de outro amigo meu, que se casou com uma judia. Perguntado se era verdade, ele respondeu: "Não. Casei-me com uma mulher".
Relembro os dois casos toda vez que fazem referência ao ministro Joaquim Barbosa, considerado o primeiro negro a ocupar a presidência do Supremo Tribunal Federal. Pensando bem, é um resquício quase inocente do preconceito racista, negado veementemente pelos nossos sociólogos e demais entendidos, mas existente na prática sob diversas formas, algumas delas até que inocentes.
O ministro é, acima de tudo, um cidadão como outro qualquer, não deve o cargo que ocupa atualmente a uma cota racial, é um brasileiro nascido em Paracatu, que se destacou no ofício que escolheu e para o qual se preparou ao longo da vida, vencendo dificuldades que, de uma forma geral, todos nós enfrentamos, uns mais, outros menos, no desafio clássico do "struggle for life", a luta pela vida.
Se há um povo que não tem necessidade de rotular seus filhos pelas características raciais, esse povo é o brasileiro, formado e formatado pela miscigenação do branco europeu, do negro africano e do índio nativo. Gobineau e Chamberlain abasteceram os nazistas e os demais racistas, condenando a mistura do sangue como o maior inimigo do gênero humano.
No caso brasileiro, apesar da discriminação que ainda existe, embora atenuada em relação a outros tempos (fomos o último país a abolir a escravidão), há motivos de sobra para não nos admirarmos quando um negro ou afrodescendente (detesto essa classificação pretensamente correta) ocupa na sociedade o lugar que mereceu.
Basta citar que três dos nossos maiores artistas foram negros: Aleijadinho, na escultura, Machado de Assis, na literatura, e padre José Maurício, na música erudita. Isso sem falar na arte dita popular, bastando citar Pixinguinha, sem falar em vultos históricos como José do Patrocínio, Cruz e Souza, André Rebouças, em nossos atletas e artistas em todos os setores.
Não constituem uma exceção, são produtos naturais daquilo que podemos chamar de "civilização". Claude Lévi-Strauss fez um diagnóstico cruel de nossa formação social, dizendo que o Brasil começou na barbárie pré-colombiana e passou para a decadência, sem conhecer o largo e profundo estágio da civilização propriamente dita. Daí o adjetivo que usou para nomear seu livro mais famoso: "Tristes Trópicos".
Em termos europeus, ele podia ter razão: os bárbaros atravessaram um largo período histórico de civilização (incluindo a Idade Média) para chegarem a uma potencial decadência cujos sintomas atualmente começam a se manifestar de forma algumas vezes dramática.
E para recuar ainda mais a constatação da negritude como elemento civilizatório, lembrarei aquele hino atribuído a Salomão: "Nigra sum sed formosa, ideo dilexit me Rex et introduxit me in cubiculum suum" (Sou negra, mas formosa, por isso o rei me amou e me introduziu em seu cubículo).
Na realidade, o rei não introduziu uma negra em sua alcova. Introduziu uma mulher que lhe deu prazer e descendência.
Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000. Sua carreira no jornalismo começou em 1952 no "Jornal do Brasil". É autor de 15 romances e diversas adaptações de clássicos.

    sexta-feira, 30 de novembro de 2012

    Mais alto o coqueiro




    Dora Kramer - O Estado de S.Paulo
    Dos 40 inicialmente denunciados pela Procuradoria-Geral da República restaram 37 réus, 25 condenados, 13 em regime fechado.
    Em princípio esse resultado oferece à sociedade uma resposta além da esperada em termos de rigor no trato de ilícitos ocorridos nos altos escalões da República.
    Se inovações houve por parte do Supremo Tribunal Federal, uma das mais importantes foi o entendimento de que quanto mais alto o coqueiro maior pode ser o tombo.
    Não se trata de condenar o cargo, mas de levar em conta as agravantes decorrentes do poder de mando. Desde a responsabilidade final sobre os atos até a disposição de impor critérios rígidos de conduta que, se ausentes, deixam prosperar a permissividade.
    Prevaleceu no STF percepção contrária à regra até então vigente na cultura do privilégio e da aceitação do lema de que detentores de mandatos, de influentes cargos e posições políticas de prestígio não são pessoas comuns, devendo a elas ser conferido tratamento especial.
    Pela posição que ocupam ou mesmo pela "trajetória de luta", quando pegas transitando à margem da lei, só seriam punidas mediante o impossível: a apresentação do recibo do crime.
    Ao (quase) fim e ao cabo de quatro meses de julgamento do processo do mensalão o Supremo disse que não é bem assim. Ou pelo menos nesse caso não foi.
    Será daqui em diante? É uma pergunta a ser respondida mais adiante. Por enquanto o que se tem de certo é um aumento no grau de confiança no Judiciário.
    Um passo e tanto nesses tempos de supremacia majestática do Executivo e de descrédito crescente no Legislativo.
    Impõe-se agora a seguinte questão: isso representa o início de um processo ou será apenas um momento fugaz, cujo efeito se dilui ao longo do tempo sem produzir nenhum avanço?
    O Brasil já viveu outros episódios em que a euforia se confundiu com a esperança. Campanha das Diretas-Já, fim do regime militar, Assembleia Nacional Constituinte, impeachment de Fernando Collor, CPI do Orçamento e tantos outros momentos.
    Isoladamente, nenhum deles virou o País de cabeça para baixo (ou para cima), mas, juntos, um ativo que se expressa no casamento entre a opinião do público e a posição da Corte guardiã da legalidade.
    Bom cabrito. Roberto Jefferson fez a linha sóbria diante da condenação à prisão em regime inicialmente semiaberto. Não se queixou, não se explicou nem se desculpou, citando Disraeli ("nunca se queixe, nunca de explique, nunca se desculpe") ao se manifestar sobre o inevitável.
    Realizou o prejuízo. Sempre soube dos riscos. Quando fez a denúncia do mensalão avisou logo: "Sublimei o mandato".
    O PT berrou na tentativa de salvar a reputação do coletivo. Jefferson, em matéria de partido fez a sua parte: não disse para quem repassou o dinheiro recebido do valerioduto, evitando arrastar o PTB para o processo.
    Sobre a pena de sete anos, existe a chance de ser transformada em prisão domiciliar na Vara de Execuções Penais, devido ao debilitado estado de saúde do condenado.
    Tangente. A estratégia da tropa avançada do Palácio do Planalto no Congresso em relação ao episódio Rosemary Noronha é tentar circunscrever os fatos ao campo da "vida pessoal" do ex-presidente Lula.
    Mais ou menos como aconteceu com o então ministro da Fazenda Antonio Palocci em relação à casa de lobby frequentada por ele em Brasília. Até que apareceu Francenildo Costa e surgiu a (má) ideia de quebrar o sigilo bancário do caseiro.
    Peixe. Calado, Lula exerce o sagrado direito de não dizer nada que amanhã ou depois possa se voltar contra ele.

    STF deve votar pela perda imediata do mandato dos deputados mensaleiros


    Felipe Recondo, Ricardo Brito e Mariângela Gallucci, de O Estado de S. Paulo
    BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal deve condenar à perda dos mandatos os deputados condenados no esquema do mensalão. O assunto será decidido na próxima semana pelo plenário do Supremo e criará divergências entre o tribunal e a Câmara dos Deputados. Pelas contas de integrantes da Corte, ao menos seis ministros votarão pela cassação imediata dos mandatos. Outros ministros deverão julgar que a cassação dos mandatos depende da votação do plenário da Câmara.
    Os deputados João Paulo Cunha (PT-SP), Valdemar Costa Neto (PR-SP) e Pedro Henry (PP-MT) perderiam os mandatos como decorrência direta das condenações pelos crimes que cometeram. Neste caso, caberia à Mesa da Câmara apenas declarar a perda do mandato, o que teria de fazer obrigatoriamente.
    Os ministros que defendem essa tese argumentam que a Constituição, no artigo 15, prevê a cassação de direitos políticos de quem for condenado pela prática de crime com sentença transitada em julgado, ou seja, não passível de recursos. Se a cassação dependesse da Câmara, o parlamentar condenado e com os direitos políticos cassados poderia continuar a exercer o mandato. Situação que esses ministros classificam como absurda.
    Pior seria, disse um dos ministros, se o parlamentar condenado a cumprir pena em regime fechado não tivesse o mandato cassado. Nesse caso, ficaria a dúvida de como ele poderia participar das votações em plenário de dentro da cadeia. Nessa situação se encontra o petista João Paulo Cunha, único dos deputados federais condenado ao regime fechado.
    Por outro lado, parte dos ministros argumenta que a Constituição é categórica - em seu artigo 55 - ao definir que nesses casos a cassação depende da aprovação da maioria do plenário. O texto da Constituição define que “perderá o mandato o deputado ou senador (...) que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”. Mas vincula a perda do mandato ao voto da maioria absoluta do plenário da respectiva Casa.
    A regra foi incluída durante a Assembleia Constituinte com 407 votos favoráveis. E ao longo das discussões, o então constituinte deputado Nelson Jobim, que depois se tornou presidente do STF, argumentou o que poderia acontecer se a cassação do mandato fosse consequência necessária da condenação criminal.
    “Neste caso, teríamos a seguinte hipótese absurda: um deputado ou um senador que viesse a ser condenado por acidente de trânsito teria imediatamente, como consequência da condenação, a perda do seu mandato, porque a perda do mandato é pena acessória à condenação criminal”, argumentou Jobim na sessão de 18 de março de 1988.
    Conflito. Para contornar a contradição entre os dois artigos da Constituição, alguns ministros afirmarão que cabe à Câmara decidir a cassação de mandatos de parlamentares que cometerem crimes contra a administração pública, por exemplo. Um dos ministros afirmou que o deputado que se envolver num acidente de trânsito e eventualmente for condenado por homicídio culposo não precisaria necessariamente perder o mandato.
    O tema, admitiu o ministro Marco Aurélio Mello, pode provocar uma queda de braço entre a Câmara e o Supremo. “No nosso sistema, o Supremo tem a última palavra”, afirmou, ao adiantar como deve votar na semana que vem. “A Constituição é o que o Supremo diz que é”, acrescentou.
    Nesta quinta-feira, 29, na posse do ministro Teori Zavascki no STF, o presidente da Câmara, Marco Maia, insistiu que cabe aos deputados decidir pela cassação dos mandatos dos colegas que forem condenados pela prática de crimes. “Na minha avaliação, a Constituição é muito clara quando trata do assunto. Em julgamentos criminais ou em condenações de parlamentares a decisão final é da Câmara dos Deputados ou do Senado de acordo com o caso”, afirmou. “Foi uma votação que contou com o voto de Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Luiz Inácio Lula da Silva, Nelson Jobim, Bernardo Cabral, Mauricio Corrêa, que depois também veio a ser ministro do STF. Portanto, não foi uma questão menor”, emendou Maia sobre a regra do artigo 55.