Frei Betto *
Adital - No século XX, a arte cinematográfica introduziu um novo conceito de tempo. Não mais o conceito linear, histórico, que perpassa a Bíblia e, também, as obras de Aleijadinho ou Sagarana, de Guimarães Rosa. No filme, predomina a simultaneidade. Suprimem-se as barreiras entre tempo e espaço. O tempo adquire caráter espacial, e o espaço, temporal. No cinema, o olhar da câmara e do espectador passa, com toda a liberdade, do presente para o passado e, deste, para o futuro. Não há continuidade ininterrupta.
Aos poucos o horizonte histórico se apaga como as luzes de um palco após o espetáculo. A utopia sai de cena, o que permite aos filósofos da desgraça vaticinarem: "A história acabou". Ao contrário do que adverte Coélet, no Eclesiastes, não há mais tempo para construir e tempo para destruir; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para fazer a guerra e tempo para estabelecer a paz. O tempo é agora. E nele se sobrepõem construção e destruição, amor e ódio, guerra e paz.A felicidade, que em si resulta de um projeto temporal, reduz-se então ao mero prazer instantâneo, epidérmico, derivado, de preferência, da dilatação do ego (poder, riqueza, fama etc.) e dos "toques" sensitivos (ótico, epidérmico, gustativo etc). A utopia é privatizada. Resume-se ao êxito pessoal. A vida já não se move por ideais nem se justifica pela nobreza das causas abraçadas. Basta ter acesso ao consumo que propicia valor e conforto: uma boa posição social, a casa na praia ou na montanha, o carro de luxo, o kit eletrônico de comunicações (telefone celular, computador etc.), as viagens de lazer. Uma ilha de prosperidade e paz imune às tribulações circundantes de um mundo movido à violência. O Céu na Terra - prometem a publicidade, o turismo, o novo equipamento eletrônico, o banco, o cartão de crédito etc.
Nem a fé escapa à subtração da temporalidade. O Reino de Deus deixa de situar-se "lá na frente" para ser esperado "lá em cima". Mero consolo subjetivo, a fé reduz-se à esperança de salvação individual.
Graças às novas tecnologias de comunicação, agora o tempo está confinado ao caráter subjetivo. Experimentá-lo é ter uma consciência tópica do presente. Se na Idade Média o sobrenatural banhava a atmosfera que se respirava e, no Iluminismo, a esperança de futuro justificava a fé no progresso, agora importa o presente imediato. Busca-se, avidamente, a sua perenização. Somos todos eternamente jovens, cultuamos o corpo como quem sorve o elixir da juventude. Morreremos todos saudáveis e esbeltos...
Pulverizam-se os projetos nesse tempo cíclico, onde no mesmo rio corre sempre a mesma água. Outrora, havia namoro, noivado e casamento. Agora, fica-se. Após anos de casado, pode-se voltar ao tempo de namoro e, de novo, ao de casado.
A destemporalizaçã
"Tudo que é sólido se desmancha no ar" irrespirável dessa pós-modernidade, cuja temporalidade fragmenta-se em cortes e dissolvências, close-ups e flash-backs, muitas nostalgias (vide a bossa nova) e poucas utopias.
Se há algo de positivo nessa simultaneidade, nesse aqui-e-agora, é a busca da interioridade. Do tempo místico como tempo absoluto. Tempo síntese/supressã
Nas artes, música e poesia se aproximam, de modo exemplar, dessa simultaneidade que volatiliza o tempo, imprimindo-lhe caráter atemporal. Na música, nossos ouvidos captam apenas a articulação de umas poucas notas. No entanto, perdura na emoção a lembrança de todas as notas que já soaram antes. Em si, a melodia é inatingível, assim como o poema, uma sucessão rítmica de sílabas e palavras sutis. O que existe é a ressonância da nota e da palavra em nossa subjetividade. Então, a seqüência se instaura em nós. Não é o tempo fatiado em passado, presente e futuro. É o presente infindável. O tempo infinito. Como no amor, em que o cotidiano é apenas a marcação ordinária de uma inspiração extraordinária.