quarta-feira, 27 de novembro de 2024

As falas da rataria, Ruy Castro, FSP

 Deus está chocado. A Pátria e a Família, então, nem se fala. Pois não é que justo aqueles que vivem falando em Seus nomes demonstraram que, ao querer passar os adversários na bazuca, no punhal e no veneno, estão pouco ligando para os valores que os ditos Deus, Pátria e Família defendem? Deus, a Pátria e a Família se referem aos áudios descobertos outro dia, que mostram generais espumando de patriotismo e pregando ódio e ranger de dentes.

E que gente grosseira e desbocada, meu Deus! Se é assim que eles conversam em família ou nas igrejas que frequentam, eu não gostaria de vislumbrar meus sobrinhos ou os filhos pequenos dos meus amigos, das minhas amigas, ao alcance de tanta boca suja. Para eles, palavrão é vírgula. Duvida?

"O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o caralho. Quatro linhas da Constituição é o caceta!" "Kid Preto, porra, por favor, o senhor tem que dar uma forçada de barra com o Alto Comando, cara. Tá na cara que houve fraude, porra. Não dá mais pra gente aguentar essa porra. Tá foda! Tá foda!" "Vai agora esperar virar uma Venezuela para virar o jogo, cara? Democrata é o cacete! Não tem que ser democrata mais agora. Acabou o jogo, pô!" "O presidente tem que fazer uma reunião com o petit comitê. Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião. Tem que ser a rataria!"

Ah, está explicado. Eles são a rataria, a turma abaixo da linha da ética. Mas Deus, a Pátria e a Família se perguntam: foi isso que aprenderam nos cursos que fizeram no quartel e lhes renderam aquelas chapinhas no peito? E o mais inacreditável vem agora: "Olha, general", diz um da rataria, "eu sou capaz de morrer, cara, pelo meu país, sabia? Pelo meu presidente, cara. Eu não consigo vislumbrar, né, meus sobrinhos, né, os filhos pequenos dos meus amigos, das minhas amigas, vivendo sob o julgo [sic] desse vagabundo [Lula]. Aprendi na caserna a honrar o meu presidente [Bolsonaro]. E eu tô pronto a morrer por isso".

Deus, que é Onisciente, avisa: "Vá devagar, meu rato. O ratão por quem você se dispõe a morrer vai te deixar na rua assim que as coisas apertarem para ele".

A presença de Machado de Assis em São Paulo, FSP

 Vicente Vilardaga

São Paulo

Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Sua memória deveria ser sempre exaltada em todos os lugares do país. Chama a atenção que em São Paulo o artista não mereça um único monumento, nem um pequeno busto em uma praça importante.

O que existe de referência urbana ao escritor carioca na cidade é o nome de uma rua na Vila Mariana, na zona Sul, ponto final de uma linha de trólebus, a 408A-10, chamada de Machado de Assis. Ela parte da rua Cardoso de Almeida, em Perdizes. Fora isso há três escolas com seu nome e nada mais. Uma delas é escola privada, outra, Emei e a terceira, de educação básica.

Retrato de Machado de Assis quando ele tinha 57 anos: São Paulo ainda era uma província
Retrato de Machado de Assis quando ele tinha 57 anos: São Paulo ainda era uma província

É incrível como um personagem tão gigantesco possa ficar tão escondido e sem referências na paisagem paulistana. Poderia haver, por exemplo, uma estátua de Machado ao lado do Anhanguera, na entrada do parque Trianon, como símbolos da civilização e da barbárie. Também é defensável um monumento no estilo Borba Gato. Seja como for, o escritor, por sua grandiosidade, merece mais do que a cidade lhe dá.

Sua relação com São Paulo era nula. Machado que viveu entre 1839 e 1908, assistiu de longe o lugarejo interiorano se transformando em um local mais cosmopolita. Mas até a primeira década do século, quando ele ainda vivia, a cidade ainda não tinha dado seu salto industrial, urbanístico e muito menos artístico, que aconteceria nos anos 1920.

Uma das razões de Machado ser pouco homenageado em São Paulo está em sua profunda relação com o Rio de Janeiro e sua falta de interação com a cultura paulista. Ele estava pouco preocupado com o estado vizinho. Não era assunto de suas crônicas. Não é um cenário frequente em sua obra. Na verdade, aparece muito ocasionalmente. Valeria uma tese: "São Paulo na obra de Machado".

Para o escritor, cujo olhar partia da capital federal, São Paulo era mais um estado brasileiro e um centro emergente de progresso e modernidade. Pode-se dizer que ele via a cidade como uma província promissora, mas pouco interesse demonstrava por ela.

Ônibus Machadão
Ponto de partida da linha 408A-10, Machado de Assis, na esquina da rua Cardoso de Almeida

Interessava-lhe mais os acontecimentos na capital e os labirintos da alma do que eventuais lampejos econômicos e literários na província. Não há notícias de viagens suas para São Paulo e talvez a cidade estivesse completamente fora do seu radar. Fala-se de alguma correspondência com intelectuais paulistas. Se Machado fosse um abolicionista engajado, ele poderia ter trocado cartas hipotéticas com o defensor dos negros Luiz Gama. Seria um bom diálogo.

Machado deveria ser para o Brasil o que Giuseppe Garibaldi é para a Itália: um símbolo de unificação. Como na Itália, onde há alguma referência a Garibaldi em todas as cidades que se visite, o Brasil poderia fazer o mesmo com Machado. São Paulo precisa fazer mais reverência ao bruxo do Cosme Velho.


terça-feira, 26 de novembro de 2024

Edifício do antigo Pérola Byington dará lugar a novo hospital, FSP

 

São Paulo

O Estado é artífice do apagamento de memórias indesejadas, das lembranças de lutas que desafiam o senso comum e devem ser esquecidas. Um exemplo é o hospital Pérola Byington, que funcionou na avenida Brigadeiro Luis Antonio, no Centro, e, em 2022, mudou de endereço e de nome e foi convertido no Hospital da Mulher, na avenida Rio Branco.

O que parece só um movimento imobiliário, esconde uma grande carga simbólica. Apesar da aparência de continuidade, o Hospital da Mulher começa a ter uma história própria para contar, possivelmente sem conflitos políticos e com discursos escorregadios em relação ao aborto. Não há a memória do que aconteceu no velho Pérola Byington, cujo prédio começará a ser reformado e receberá um novo hospital.

Antigo hospital Pérola Byington
Antigo hospital Pérola Byington: palco de disputas entre grupos pró e antiaborto

O Pérola Byington era uma referência histórica em atendimento a mulheres e vítimas de violência sexual ou doméstica, além de ter uma reconhecida oncologia. Era também um dos lugares de discussão e imposição do aborto legal. Entre 2019 e 2021 foi palco de disputas entre grupos pró e antiaborto. Estava no centro de um debate que divide os brasileiros.

Agora foi para uma nova área, livre da herança política que havia acumulado no passado. Esvaziou-se toda uma história que estava marcada no antigo prédio, na velha localização. E tudo aconteceu muito rápido – a obra teve início de julho de 2019. Em questão de dois anos, o governo entregou o projeto pronto, com um edifício erguido na região conhecida como cracolândia.

O Hospital da Mulher foi construído por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP) ao custo de R$ 245 milhões. O governo do estado delegou a construção do hospital ao grupo Construcap, que também é responsável pela manutenção predial e dos equipamentos.

A gestão é dividida entre a OSS (Organização Social de Saúde), o Seconci-SP (Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo) e a empresa Inova Saúde SPE S/A. É um modelo privado bem diferente do que funcionava antes. Quem manda agora é outra turma.

Fachada do Hospital da Mulher
Fachada do Hospital da Mulher, localizado na avenida Rio Branco, nos Campos Elíseos

É óbvio que mudar para uma sede com maior capacidade é uma vantagem. Os hospitais precisam se modernizar e o da Mulher pode receber 20% mais pessoas do que o Pérola Byington. Não faltam argumentos para uma mudança. Mas, nesse caso, havia também o efeito simbólico: dissipar uma memória inquietante relacionada ao aborto e aos direitos da mulher.

Para enfraquecer ainda mais os vínculos entre o velho e o novo hospital, a Cruzada Pró Infância, que detém os direitos sobre o nome da filantropa e ativista social Pérola Byington rejeitou seu uso na nova construção. Num ofício, a entidade afirmou que "após reuniões com familiares da professora, ficou definido que o nome Hospital Pérola Byington pertence à Cruzada Pró Infância e não poderá ser utilizado no novo espaço".

A Cruzada Pró Infância foi fundada em 1930 por Pérola Byington e por Maria Antonieta de Castro para defender gestantes e crianças e, em 1959, inaugurou o hospital na avenida Brigadeiro Luís Antônio. Há décadas, o imóvel era alugado para o governo do estado de São Paulo por R$ 380 mil mensais. Simbolicamente, o Pérola Byington acabou.